OBRAS RARAS


ROUBO DE LIVROS RAROS: ALGUMAS QUESTÕES MORAIS

Mês passado li outra matéria sobre aquele já citado roubo de mapas raros da Yale University (veja em “De Roubos e Roubos”, neste website). Esse “último” grande roubo de mapas raros nos Estados Unidos ainda é assunto, não apenas pelo acontecimento propriamente dito.

 

Esse não foi um roubo qualquer, como os praticados em 1997 por Stephen Blumberg, por exemplo, que retirou de mais de 300 instituições aproximadamente 25 mil livros raros, estimados em 20 milhões de dólares. Mr. Blumberg queria apenas ter o prazer de possuir os livros em sua, digamos, coleção particular. Ele até desenvolveu a arte da serralheria de portas e fechaduras para melhor exercer o seu oficio.

 

O que deixou a comunidade livreira norte-americana furiosa foi, na realidade, o fato de Edward Forbes Smiley III, condenado por retirar o equivalente a 3 milhões de dólares em mapas raros de Yale, ser um livreiro. O agravante é que ele traiu sua classe. Por muitos anos ele foi um estimado e respeitado negociante. Tinha a confiança de funcionários de bibliotecas e museus. Ademais, ele danificou documentos de inestimável valor cultural, cortando-os de livros com uma lâmina, para depois vendê-los. Esses livros e mapas raros são quase sempre exemplares únicos. Sem falar que, de fato, não são apenas propriedade de instituições, mas de todos.

 

Vamos aguardar a sentença, que sai em breve. Ao que parece, além do valor monetário dos mapas, a ofensa cultural deverá ser levada em consideração na hora da pena. Já há um precedente. Em 1997, o depoimento da então diretora da biblioteca de livros raros e manuscritos da Columbia University em Nova Iorque, Jean Ashton, enfatizando o valor cultural de um material roubado por Daniel Spiegelman, foi aceito pelo juiz, que decidiu aumentar a pena do condenado.

 

Também mês passado li sobre o roubo de livros raros na Manchester Central Library, Inglaterra. Dessa vez, o “elemento” envolvido era funcionário da biblioteca, e sua casa já armazenava o equivalente a alguns milhões de libras esterlinas (apenas um livro de 300 anos de idade foi avaliado em mais de 20 mil libras esterlinas). A polícia chegou até o ladrão porque membros do Conselho que administra a biblioteca viram alguns dos livros da biblioteca anunciados para leilão no conhecido website e-Bay.

 

No Rio de Janeiro, o Arquivo Geral da Cidade teve cerca de duas mil fotografias e outros materiais raros roubados durante o feriado de Corpus Christi desse 2006. Havia sete portas trancadas com cadeados; nenhuma arrombada. Assim que foi descoberto o roubo, o Arquivo acertadamente colocou em seu website a lista completa dos objetos roubados e quem estava responsável pelas investigações. Funcionários já foram ouvidos e impressões digitais colhidas. Parabéns pela iniciativa! Todas as bibliotecas que sofreram roubo deveriam fazer o mesmo com a rapidez necessária. Sem vergonha da palavra roubo.

 

Não é novidade (está na literatura) que na maioria dos casos de roubo há envolvimento de funcionários da instituição. Assim acontece nos países mais desenvolvidos, e tudo indica que o mesmo se passa aqui. E, imaginem vocês, aqui no Brasil ainda temos de lidar com uma série de dificuldades que lá existem em menor escala ou inexistem: alta rotatividade de pessoal em bibliotecas; questões pessoais prevalecendo sobre questões profissionais, interferindo na qualidade dos trabalhos; falta de política institucional para um eventual caso de roubo; falta de diretrizes por parte de associações de classe e de órgãos competentes, para citar alguns problemas. Precisamos de efetivos instrumentos, internamente em nossas bibliotecas, arquivos e museus, e externamente, no que diz respeito a ações concretas e corretas para lidar com o ocorrido e coibir futuras ações de ladrões.

 

É evidente que não se pode abrir exceção às rígidas regras de uma seção de livros raros. Nem para conhecidos, estimados e renomados livreiros (é aquela situação desagradável em que o inocente paga pelo pecador, infelizmente). Funcionários devem, sim, ser bem escolhidos, quando se candidatam a trabalhar com material valioso. Mais importante do que tudo, é saber o que fazer para evitar o roubo e, caso aconteça, quais procedimentos tomar.

 

Tenho visto, com certa tristeza, instituições governamentais um pouco abandonadas, pelos governos e pelos seus próprios funcionários. Por mais que tente entender a situação, por exemplo, do funcionalismo público, sem aumento, sem verba para projetos, com condições de trabalho não muito favoráveis, não posso concordar que isso seja desculpa para a falta de compromisso com a instituição na qual se trabalha e com seu dever de cidadão. Só escuto falar em direitos. Acho mesmo que algumas pessoas não estimam o suficiente as coleções que suas bibliotecas possuem. O jogo do Brasil contra a França nessa Copa é uma boa imagem do que quero dizer.

 

Falta profissionalismo, sim. Falta a alguns funcionários aprender que serão respeitados  pela qualidade do trabalho que realizam, e não usar o  salário baixo como justificativa para o descaso. Falta entender que somente através do compromisso e da seriedade é que evitaremos que nossa memória seja vilipendiada pelos que roubam nosso patrimônio. No fim, os ladrões fazem o mesmo que alguns funcionários fazem: cuidam de seu lado pessoal.

 

Até a próxima!

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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.