CINEMA


NO MEIO DO NADA

No meio do nada, ou no meio do deserto nordestino, um caminhão transporta aspirinas em um projeto de negócio que hoje, mais de sessenta anos depois, sabemos que deu certo, a aspirina é um sucesso farmacêutico internacional. O caminhão que levava algo para as mazelas do povo, levava ainda uma novidade inexplorada naquelas paragens: o cinema. Mesmo sabendo-se tratar-se apenas de propaganda do remédio e alguns filmes-documentários de jornalismo cinematográfico, era o cinema, apresentado por meio de um projetor de 16mm.

 

No meio desse nada, com uma estrada que ligava um ponto qualquer do Brasil à Triunfo, uma cidade do sertão pernambucano, um lugar em que a política de oportunismo e a corrupção eram as únicas referências possíveis.

 

A ação se passa no Nordeste brasileiro de 1942, e o espalhar da boa nova, um remédio milagroso, é o que move o caminhão numa estrada solitária e interminável. A novidade medicamentosa é a aspirina, uma marca farmacêutica alemã registrada, que, segundo o bordão, acaba com todos os males.

 

Uma carona na estrada é o mote para o desenvolvimento da ação. Imagine o que seria a viagem de Johann (Peter Ketnath) no meio da caatinga se não tivesse como companheiro de viagem o impagável Ranulpho (João Miguel), que se compraz em alegria ao proclamar que vai trabalhar para o alemão por 800 contos de réis “só para ajudar” o gringo. A partir daí o espectador é contemplado com um rol de frases dignas de figurar em qualquer diretório do realismo brasileiro.

 

Frases como “lugar ruim é assim mesmo não acaba nunca”, ao se referir a distância a ser percorrida até Triunfo em estrada que parece não ter fim, reclamada pelo alemão; ou “isso aqui é tão ruim que nem guerra chega”, ao rebater a proclamação do alemão de que aqui bombas não caem do céu; ou a impecável ironia ao desafiar o alemão quanto às propriedades da aspirina boa para todos os males: “se esse remédio matar a fome dessa gente o doutor vai enricar”.

 

Ganhador da 29ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, “Cinema, Aspirina e Urubus” é cinema cult. Imagine um argumento tão simplório como atravessar o sertão nordestino para vender aspirina em um lugar inóspito como a desconhecida Triunfo, sustentado em um roteiro que desenvolve a ação em uma estrada cercada de mata seca por todos os lados. O que sobressai num panorama tão incolor? O diálogo.

 

Isso mesmo, o que se impõe no transcurso da viagem empreendida por Johann e  Ranulpho é a riqueza do diálogo. Mais justo dizer: a fraseologia de Ranulfo. O nordestino, que na década de 1940 já buscava o Rio de Janeiro (a cidade grande preferida até então, depois preterida por São Paulo) não deixa barato a sua desgraça, e faz troça da sua miséria. Nascido em Bonança, um povoado “de merda”, com uma rua e cinco casas, segundo a descrição do próprio, vai para o Rio de Janeiro em busca de um trabalho com carteira assinada, o sonho de um novo Brasil getulista, onde imperassem a ordem e o progresso, sinônimo tupiniquim para desenvolvimento social.

 

O que Cinema, aspirinas e urubus nos mostra é uma realidade nordestina tão próxima entre 1942 e 2005 no que diz respeito à pobreza e a exploração da gente (da minha  gente, tão proclamada por décadas). A exceção é que com a globalização da comunicação, o aparelho de projeção de 16 mm, o suporte físico da comunicação da informação, de então, foi substituído por antenas parabólicas. Com a comunicação de massa a ingenuidade acabou, mas a exploração não. A cena da peregrinação de Jovelina (Hermila Guedes) expulsa de casa pelo pai, indo para o Recife, a cidade grande da região, de carona ou a pé, sugere um futuro de prostituição. O que mudou foi o transporte na região, para melhor, e a aspirina ganhou concorrentes, numa escala mundial de globalização.

 

Um outro aspecto mostrado no filme é o êxodo para a Amazônia, um lugar pior do que o Nordeste, no entender do nordestino. Era preciso desbravar a região amazônica, ou melhor, oferecer mão de obra barata para a extração da borracha a ser enviada para os países desenvolvidos, e nada melhor do que uma mão de obra farta e faminta de uma região em que a fé no “padim” Cícero é a maior alinhada, e que a aspirina, decididamente, não poderia acabar com todos os males, muito menos com a fome.

 

Para fugir da prisão decretada pelo governo brasileiro aos cidadãos alemães em território brasileiro, Johann, voluntariamente, engrossa a lista de condenados ao desterro em uma terra associada a feras e índios. Literalmente Johann saiu do meio do nada em direção a lugar nenhum. Pior, sem o seu cinema, sem as suas aspirinas, e deixando para trás os urubus. Ranulpho, para o seu prazer e deleite, herda o cinema e as aspirinas. Na caixa de frases de Ranulpho cabe, então, um dito popular que viria a calhar: “morre o boi para o bem do urubu”.

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Cinema, aspirinas e urubus.  Brasil, 2005.  Direção e roteiro: Marcelo Gomes. Elenco: Peter Ketnath, João Miguel e Hermila Guedes.

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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo