CINEMA


ENTRE A VENDA DE ILUSÕES E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA BARBÁRIE

Retorno às atividades nesta coluna com um atraso de um mês, pois que deveria já ter escrito no início do mês de março. Afastei-me em setembro, por questões acadêmicas, após comunicar ao mantenedor da página, com o compromisso de retornar em dezembro. Tive que ampliar o prazo do afastamento até fevereiro. E só agora estou retomando este espaço em que posso manifestar, livremente, a minha opinião sobre cinema. E mais que isso, posso compartilhar o meu pensamento com outras pessoas que, a partir da leitura realizada, podem manifestar as suas opiniões, algumas com agrado, outras com desagrado, encaminhando suas mensagens através da própria página.

 

Nesse período, recebi algumas mensagens falando sobre alguns filmes analisados. Outras mensagens contiveram sugestões para filmes a serem analisados. Esse feedback é algo que permite ao colunista uma auto-avaliação. Três contatos feitos diretamente pela página merecem destaque. Resguardando a identidade dos remetentes como é norma na questão da Internet, revelo aqui três mensagens recebidas, justamente pelos fatos que passo a narrar:

 

- o primeiro, em algum lugar do Brasil, sem biblioteca pública, sem acesso público a rede mundial de computadores, um leitor valeu-se de um computador pessoal para dizer-me das suas dificuldades de encontrar algo sobre um filme que precisava para fazer um trabalho para a escola.  Tratava-se de Diário das motocicletas (O show de Thurman e a moribunda la poderosa, maio/2004) e apresentou uma série de questões do seu interesse para resolução.  Identificou-se como um estudante;

 

- o segundo, desancou para cima do articulista, achando-o preconceituoso e de ser, provavelmente, um carioca, ou um alemão. Não gostou da minha análise de Cinema, aspirinas e urubus (No meio do nada, agosto/2006).  Como não se identificou profissionalmente, pode ser que se trate, no terreno das hipóteses, de um intelectual de esquerda, ainda considerando a existência do Muro de Berlim;

 

- o terceiro, a partir da leitura sobre o filme Hotel Ruanda, dividiu com o articulista suas preocupações com a insustentável indiferença de algumas pessoas com a barbárie institucionalizada no mundo, e das quais não se pode esperar muito (Hóspedes da despedida, outubro/2005).  Reclama de colegas de profissão. Uma profissão que tem no mérito da sua existência a discussão de valores da cidadania. Identificou-se como professora.

 

Nesse sentido, talvez o segundo leitor, ao não aceitar a análise do filme e deixar implícito a sua negação ao filme, queira que o cinema tenha um discurso que ao invés de mostrar a realidade, venda ilusões e facilidades, pura diversão. Talvez o meu interlocutor, que na verdade foi agressivo e deselegante, prefira um discurso que venda ilusões e, por conseguinte, esconda os urubus que planam sobre o nordeste, ou os facões besuntados de sangue que cortam o ar em Ruanda. No entanto, no afã de registrar a sua indignação contra o texto e o filme, não atenta que o narrado está delimitado nos anos 1940.

 

No caso da professora resta o seu pedido de socorro por não mais enxergar uma saída. Tem consciência, segundo o seu texto, de que faz o possível trabalhando o conceito de ética junto aos seus alunos. Mas convive com pessoas que não assumem a mesma postura, pois estão além da compreensão de que muito do que é vinculado no cinema é parte de uma realidade absoluta, embora absurda. Não creditam ao meio cinematográfico a possibilidade do processo de comunicação da informação de fatos verídicos. Entendem, ou preferem entender que o cinema é puro entretenimento, um vendedor de ilusões.

 

E é a palavra ética que pode represar o caos social. Quem vende facilidades, faz marketing de oportunidades concretizadas. Em alguns casos, os fins justificam os meios, e celebra-se acordo com Deus comemorando-se com o diabo. Só a memória, seja ela preservada na escrita ou na imagem, tem a dimensão exata da compreensão histórica. E, assim, o cinema assume um lugar de destaque, quando possível de ser visto, propondo aos interessados, o entendimento e a continuidade do conhecimento acessando outros suportes possíveis.

 

Quanto ao colunista apresenta uma visão pessoal, um recorte social de um dado momento histórico, é a sua interpretação para os fatos narrados no filme analisado. Ele transforma dados em informação, deixando ao leitor a perspectiva de completar o processo do conhecimento com a busca de mais informações. Além disso, a interpretação, independente de quem a faça, é subjetiva. Registra-se tanto a verdade da mensagem tornada pública, quanto o fato de que uma vez publicada a mensagem, o autor de forma democrática expôs o seu pensamento e, portanto, expõe-se para contestações.

 

E nesse clima da venda de ilusões ou da institucionalização da barbárie, no meio de tantos filmes em cartaz, resultado da safra oscariana, a Coluna recomenda assistir ao O último rei da Escócia. Com exibição de cenas fortes que Cinema, aspirinas e urubus e Hotel Ruanda não mostraram. No Nordeste, da década de 1940, o diretor Marcelo Gomes (Cinema...) mostra a miséria nordestina, sem mostrar as mortes decorrentes da inanição provocadas por uma política da barbárie e dos malefícios oficial do coronelismo. Já Terry George (Hotel Ruanda) dá ao mundo a noção da barbárie instalada em Ruanda, na década de 1990, sem mostrar os corpos mutilados por facões espalhados pelas ruas (como foram mostradas fotografias na imprensa escrita). Em O último rei da Escócia, Kevin Macdonald, coloca o espectador em contato com a violência explícita. Não há como nenhuma articulista negar o fato. Ao menos nesse caso é explícita a instituição da barbárie e o cinema não pode vender ilusões.

 

O último rei da Escócia foi injustiçado ao não ser indicado para a categoria de melhor filme. Prêmio que ganhou na Inglaterra, além de roteiro. Já a magistral atuação de Forest Whitaker, como o ditador ugandense Idi Amin, ganhou os prêmios como melhor ator no Oscar, Globo de Ouro e o BAFTA (Inglaterra).

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O último rei da Escócia. Inglaterra, 2006. Drama. Direção: Kevin Macdonald. Com: Forest Whitaker (Idi Amin), James McAvoy (Nicholas), Kerry Wahington (kay) e Gillian Anderson (Sarah).

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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo