CINEMA


AS INTERDIÇÕES EM LECTER

Virou lugar comum dizer, com justificadas razões, que o primeiro filme de uma seqüência, que vem na esteira do sucesso do primeiro, é imbatível. Com raríssimas exceções como o impressionante “Kill Bill”, é difícil encontrar sucessores à altura do primogênito.

 

Assim, quando o médico canibal Hannibal Lecter ficou famoso em 1991, ficou também a certeza, para o espectador mais consciente, que ali pontificava um personagem sem precedentes na filmografia do suspense, com uma estética que confirmava o cinema como a arte das artes.

 

O silêncio dos inocentes (1991) apresenta o personagem acima citado, um perigoso psicopata (encenado magistralmente por Anthony Hopkins), acusado de canibalismo, em um primeiro filme de uma seqüência que chega ao quarto filme. (Alguns apontam cinco filmes considerando-se que Dragão Vermelho tinha sido apresentado em 1986. No entanto, Dragão vermelho foi refilmado em 2001, passando a incorporar-se a seqüência capitaneada por O silêncio dos inocentes).

 

Assim, a seqüência revelou dois bons filmes: Hannibal (2001) e Dragão vermelho (2002), que preservaram as características da inteligência psicótica e o desejo antropofágico do médico Hannibal Lecter. Eis que à seqüência é incorporado um quarto filme: Hannibal - a origem do mal (2007). Assistir a este quarto filme é fazer a conexão necessária com os outros três, pois é possível acompanhar a formação da personalidade doentia de Lecter.

 

Se o filme deixa a desejar, isto acontece pela inevitável comparação com a trilogia que o antecedeu. Mas tem a sua importância por explicar, por dar sentido a uma enigmática personalidade psicótica. Hannibal assemelha-se a um sem número de super-heróis, que vêem seus pais serem mortos, no seu caso agravado por ver também a irmã ser morta para alimentar um bando de párias de guerra. Nasce assim o seu eterno desejo de vingança, com lapsos de justiceiro ao auxiliar a polícia na caça de alguns assassinos em série.

 

Na verdade, a formação de Lecter está pontuada de interditos. Primeiro, a morte dos pais e a da irmã, com uma violência desproporcional e despropositada imposta à vítima; segundo, a passagem da infância e adolescência num orfanato soviético do pós-guerra em que foi transformada a mansão da sua família; e terceiro, a separação da única mulher existente na sua vida.

 

As interdições em Lecter, apresentadas no transcurso da formação da sua personalidade, desde os pesadelos de criança, até a entrada na faculdade de medicina, ainda aos dezessete anos, quando busca incessantemente uma forma de montar o quebra-cabeça do horror que viveu, estabelecem um modo de ser em que o ato da vingança é a única alternativa para a sua paz. As interdições em Lecter se fazem presentes desde a infância, quando fica órfão, até a sua primeira fase adulta, ao isolar-se do convívio familiar, quando se separa de sua tia e amante, a japonesa Murasaki, a única pessoa com quem ainda tinha um laço familiar.

 

Este ato de separação é determinante para que a personalidade de Hannibal se solidifique, uma vez que isolado de todo e qualquer laço afetivo ele dá vazão ao seu instinto mais impiedoso. Ao pressentir que seria abandonado por sua tia (e amante), justamente por não entender a saga da vingança que se prenunciava infinda, Lecter ensaia uma frase difícil para ele ao dizer a sua tia que a ama. Tal afirmação é devolvida por Murasaki com uma provocação, ao inferir que alguém que chegou a tal ponto não pode amar ninguém (ela se refere ao canibalismo). Neste momento revelam-se duas questões marcantes: o ódio e a antropofagia já enraizados na aura do jovem e promissor médico Hannibal Lecter.

 

Nos fragmentos de memória de Lecter assume e assombra a revelação de ter feito a sua iniciação canibal com a própria irmã; reside aí o caráter antropofágico do personagem.  Constata-se assim, a partir de uma experiência de indução à lembrança do passado distante, uma ação aprisionadora da sua mente que termina por influir na sua realidade.

 

O jovem médico Hannibal Lecter, de Hannibal – a origem do mal, é sagaz como o maduro Hannibal Lecter de O silêncio dos inocentes. O quarto filme não tem a mesma intensidade e carga dramática do primeiro, mas o personagem já é dono da mesma mente refinada e inteligência psicótica.

 

Para quem viu em O silêncio dos inocentes, em Dragão Vermelho e em Hannibal, um perigoso psicopata e o considerou charmoso e simpático, é impossível não assistir a este filme, para finalmente entender como surgiu o enigmático e cativante Hannibal Lecter. Ademais, como o espectador da seqüência acostumou-se a ver, os fatos narrados em um filme são anteriores ao filmes anteriormente vistos, o que determina que ao espectador caiba uma decisão: ver os filmes como continuações, ou como um filme novo a cada novo filme.

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Hannibal - a origem do mal. (EUA / Inglaterra / França, 2007).  Suspense. Direção: Peter Webber. Roteiro: Thomas Harris. Elenco: Gaspard Ulliel, Gong Li Dominic West e Helena Lia Tachovska.


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo