CINEMA


O PARADOXO DO ROUBO

Ao deparar-se com um título como “Infância roubada” é difícil ao leitor imaginar exatamente do que se trata, pois que roubo pressupõe o subtrair algo de alguém através da mão-armada. Dito isto, do ponto de vista lexical, como imaginar que se roube uma infância? Pois é este assunto que trata um filme sul-africano que tem como título nada menos que essa incômoda nomenclatura.

 

Um filme emocional. Sofrível como um roubo. Sensível como uma negação. Pois bem, Infância roubada, África do Sul, 2005, trata de um tema atual: a violência na periferia das grandes metrópoles, assomada pela delinqüência juvenil. O cenário é típico: uma grande concentração de barracos, ausência de urbanização e higiene, exclusão de serviços básicos, grande número de desempregados, outro igual de adolescentes e uma densa população de crianças, dentro de um crescimento populacional sem limites. Uma geografia do subdesenvolvimento configurada em guetos, como o de Johanesburgo, a favorecer a formação de gangues no entorno de drogas e assaltos.

 

Tal tema, abordado pelo diretor Gavin Hood, deixa claro que infância pode ser um conjunto de fundamentos afirmativos ou negativos vivenciados em um período de vida. Daí a constatação de que alguns tiveram infância. Outros não. No entanto, tal verificação é difícil, pois para os incluídos existe uma valoração, e para os excluídos um outro valor é dado. Cada um dentro dos seus parâmetros. Então como se imaginar que se roube a infância de alguém?

 

É isso que o filme em pauta mostra. Hood, baseado em seu próprio roteiro, mostra que tal verificação é possível, e como uma existência constitui ou não uma infância. Ao enfrentar uma rotina de violência doméstica o pequeno Tsotsi tem duas opções: submeter-se ao regime do terror imposto pelo seu pai, ou enfrentar a realidade das ruas na iminência da delinqüência e da morte, que se apresentam inevitáveis. Na verdade, a realidade que se apresenta ao menino é o modelo dos medos de cada dia.

 

Garoto de temperamento dócil, de repente, passa ao convívio com garotos de rua, habitando em bueiros, em busca da sobrevivência. O endereço da delinqüência é a estrada possível, e a infância conpuscada é transportada para uma adolescência violenta confirmada na figura de um autoritário líder de gangue. Resultado da sua fraqueza do ponto de vista do entendimento humano, e da sua fortaleza do ponto de vista do enfrentamento social.

 

Mesmo enfrentamento social que vai lhe dar o mote para mudança de vida. Ao participar de um assalto, e roubar um carro, leva no banco traseiro um bebê (algo comum no Brasil). Tsotsi (Presley Chweneyagae), num ato impulsivo, não o abandona no carro, e leva-o para criar. O filme exibe, a partir de então, cenas inusitadas de um pai neófito, portanto despreparado. No seu desejo de criar a criança, a oculta de seus maiores amigos e promove cenas grotescas. O principio básico da alimentação vai evocar a necessidade essencial da presença feminina. Algo resolvido ao descobrir na comunidade uma jovem mãe viúva com um filho em período de amamentação. Viúva de marido assassinado ao ir trabalhar, provavelmente pela própria gangue liderada por Tsotsi, ou uma outra qualquer no meio de tantas, a jovem Miriam (Terry Pheto) vai completar o ciclo do despertar de emoções em Tsotsi que quer de volta a sua infância roubada e assim constituir uma família.

 

O roubo da criança na verdade não significa uma infância roubada, e serve para demonstrar que o ladrão é a vítima da sociedade, ele quem teve a infância roubada. Tudo muda na vida de Tsotsi a partir do roubo do bebê, e a disposição em cuidar do bebê mostra a necessidade de recuperar tal período. A infância roubada não foi a do bebê, mas a do adolescente Tsotsi, vítima do próprio pai, ao negar-lhe as condições mínimas de um relacionamento humano.

 

Infância roubada, ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro 2006, é um filme magistral, pois leva o espectador a pensar nos processos sociais que roubam a infância, um roubo tão paradoxal que não pode ser concebido. 

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Infância roubada, África do Sul / Inglaterra, 2005. Direção e roteiro de Gavin Hood. Roteiro baseado em livro de Athol Fugard. Com: Presley Chweneyagae, Terry Pheto, Kenneth Nkosi, Mothusi Magano, Zola, Rapulana Seiphemo, Nambitha Mpumlwana.


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo