CINEMA


SOCIEDADE, CULTURA E PAIXÃO

As manifestações culturais expostas nas várias mídias mostram as vertentes do comportamento humano e suas pluralidades. É comum que o autor de um texto literário ao centrar-se em um tema faça as abordagens no seu entorno social. Sem isso o seu texto ficaria árido por demais, é preciso uma terra movediça ao redor, justamente para mostrar a amoldagem dos comportamentos, e as reflexões possíveis sobre atitudes díspares em se tratando do ser humano.

 

Costumo fazer tal leitura no cinema mais do que em livros. Embora as duas mídias permitam tal manifestação de análise, uma complementando a outra independente da direção, seja antes a impressa para depois visualizá-la, seja antes o texto visual para depois o texto impresso. Sempre é possível para o articulista, após a leitura de um texto, seja impresso ou visual, fazer o recorte do seu interesse, embora outros recortes sejam possíveis.

 

Tenho, com certa recorrência, feito recortes ao discurso de relações passionais. E o cinema é mestre nesta questão, uma vez que a leitura visual é mais forte que a leitura impressa. Enquanto que nesta é preciso imaginar a cena, naquela a cena está pronta; a imagem é determinante. As manifestações expostas no cinema mostram os extremos do comportamento do ser humano, com suas concretudes ou suas abstrações. A paixão, então, embora única, se vista do ponto de vista emocional, também pode ser vista de forma diferente considerando-se as representações sociais e os processos culturais.

 

E isso pode ser visto em dois filmes que representam culturas diferentes em sociedade distintas: um africano e um europeu. Ambos falam de paixão, mas dentro daquele terreno da areia movediça das diferenças sociais. Refiro-me ao Caos (Egito, 2007) e ao Lady Chatterley (Bélgica, 2006). O primeiro mais um filme do veterano cineasta egípcio Youssef Chahine, com co-direção de Khaled Youssef, o outro uma refilmagem do clássico romance do escritor inglês D. H. Lawrence, sob a direção da francesa Pascale Ferran. O primeiro, um momento da conturbada situação política egípcia, com desmandos policiais e desrespeito à ordem jurídica; o segundo, o momento em que a aristocracia inglesa começava a discutir as greves de mineiros e a legislação que trataria das reivindicações. Ou seja, duas culturas diferentes, mas com as mesmas perspectivas sociais, apenas discutindo-se as peculiaridades de cada uma.

 

Então, é neste cenário social que se processam duas histórias de paixões que se entranham nas questões sociais. Em Caos, uma paixão doentia (simbólica de um Estado doente) representada na pessoa do chefe de polícia, representante da classe opressora, que tem como vítima uma professora pública, uma representante da classe reprimida; em Lady Charttellly, uma paixão controlada representada na pessoa de uma aristocrata, representante da classe dos incluídos, e um guarda-caça, empregado da propriedade, representante da classe dos excluídos.

 

Em Caos a prepotência machista se esconde, de forma covarde, no autoritarismo do estado, já que o chefe de polícia se auto-proclama o próprio estado, ele é o Egito, e, portanto, não aceita ser contrariado. Rejeitado pela mulher objeto do seu desejo, usa a força do seu poder, no qual se esconde, para dar cabo das suas intenções passionais. Seqüestro e estupro são motes para dar lugar às cenas que instituem o caos. Na paixão doentia o homem quer um filho à imagem e semelhança da mulher amada. Uma gravidez que se anuncia indesejada para a mulher.

 

Em Lady Chatterley o papel masculino faz o caminho inverso: o da gentileza, seja tratando-se do amante da aristocrata, seja tratando-se do marido. O poder, sempre existente em qualquer relação social, revela-se liberal, e o marido permite uma gravidez desejada pela mulher, embora fora do casamento.

 

No filme egípcio a paixão mostrada acontece entre homem e mulher livres, mas não existe correspondência, o que cria conflitos. No filme belga a paixão exposta é entre um homem livre e uma mulher casada, o que por si só gera conflitos, mas cria cumplicidades.

 

As seqüências das cenas finais são antagônicas. Enquanto os diretores Youssef Chahine e Khaled Youssef mostram a desestruturação psicológica e morte física de seu personagem passional, a diretora Pascale Ferran mostra o equilíbrio e a perspectiva de vida em que a paixão embora seja dominante convive com boa dose de racionalismo. Mesmo assim, esse racionalismo contido em Lady Chatterley cede para o passional quando na seqüência final surgem promessas de vida em comum de pessoas socialmente diferentes, tomando-se como prerrogativa a condicional se. O homem se dispõe a esperar a mulher amada pelo tempo necessário. No caso, se um dia a amante resolver divorciar-se irá ter com ele. E ele abre mão de qualquer mulher na sua vida, pois a si bastaria saber que um dia ainda poderia tê-la.

 

Se em Caos reina o autoritarismo vinculado ao poder, o machismo vinculado ao comportamento humano, à prepotência, truculência e arrogância característicos dos que estão associados aos cargos públicos, em Lady Chartelly sobra o liberalismo, a cumplicidade, e a compreensão dos homens vinculados a um comportamento cultural, independente do status social.

___________________

Caos. Egito, França, 2007. Direção: Youssef Chahine, Khaled Youssef. Roteiro: Nasser Abdel Rahman. Com: Khaled Saleh, Mena Shalaby, Hala Sedky e Youssef El Cherif.

 

Lady Chatterley.  Bélgica, França, Inglaterra, 2006. Direção de Pascale Ferran. Roteiro de Roger Bohbot, Pascale Ferran e Pierre Trividic. Com: Marina Hands, Jean-Louis Coullo’ch, Hippolyte Girardot, Hélène Fillières.

   367 Leituras


Saiba Mais





Sem Próximos Ítens

Sem Ítens Anteriores



author image
JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo