CINEMA


ENTRE A DIVERSÃO E A CIÊNCIA

O que dizer de um jogo que envolve os seus jogadores de tal forma que se perde, muitas vezes, a noção de que ele é uma diversão, e passa a assumir o papel de devoção. Assim é o xadrez, que desenvolve no seu admirador um clima tão passional quanto a mais violenta das paixões. Há todo um clima de mistério e sedução que envolve o jogo do xadrez. Tido como um jogo onde o intelecto é por demais exigido, revela uma carga dramática passional.

 

São muitos os exemplos de jogadores e intelectuais famosos que, dominados pelo fascínio do jogo, deixaram-se absorver de tal modo que nada mais importava a não ser o xadrez. Isto porque para ser bem jogado, para ser um vencedor (e o homem é um animal que não quer perder), revela-se a necessidade de se estudar o jogo de forma científica. Assim, o xadrez oscila entre a diversão e a ciência.

 

Imaginar que o xadrez seja tão precioso que o estudo dos movimentos ajude na realidade pode ser fábula, mas também pode ser algo concreto. E em se tratando de fábula e realidade nada melhor que o cinema para retratá-las. É possível através da magia do cinema buscar-se informações que norteiem a realidade. Assim, fiz observações sobre dois filmes que têm como temática o jogo do xadrez.

 

Um deles é O último lance (EUA, 2000), baseado em livro de Vladimir Nabokov, tem roteiro assinado por Peter Berry, e direção de Marleen Gorris. Um filme que mostra a excentricidade de um jogador atormentado pela busca da jogada genial, que determinaria a conquista de um título importante, e a paixão de uma jovem pelo jogador, provavelmente conquistada justamente pela excentricidade. Além do xadrez, está em curso um jogo de sedução que mistura afeto, paixão, morte e uma disputa por poder e ascensão social.

 

No outro filme, Lances inocentes (EUA, 1993), dirigido por Steven Zaillian, com roteiro dividido entre este e Fred Waitzkin, não se pode falar de excentricidade, mas há o elemento desestruturante da obsessão pelo jogo. Um talentoso e precoce garoto de sete anos é obrigado a dedicar-se ao xadrez. É, então, entregue a um mentor que vê na criança o futuro campeão norte-americano, substituto do lendário Bobby Fischer, o maior jogador americano de todos os tempos. A carga dramática do filme não revela nenhuma paixão, mas revela a obstinada busca pela glória, pelo sucesso, tal qual no primeiro.

 

Em Lances inocentes a obsessão desenvolvida pelo pai do precoce gênio enxadrista, um cronista esportivo, para que o filho dedique-se ao xadrez, beira o absurdo. Ao perder propositalmente o primeiro jogo de um torneio, para se livrar da responsabilidade de ganhar sempre, pai e filho encontram a oportunidade da reconciliação.

 

Se em Lances inocentes foi possível tal reconciliação, que determinou um futuro tranqüilo para a criança, hoje um adulto normal (que embora dotado para o xadrez, pratica várias modalidades esportivas), o mesmo não foi possível para a criança de O último lance, entregue a um mentor que, longe da família, o usava em torneios para ganhar dinheiro. O resultado é uma esquizofrenia em adulto – o retrato mostrado no filme.

 

Os filmes têm seus lances, sejam últimos, sejam inocentes, em seqüências de torneios de reconhecimentos nacionais. No primeiro filme, trabalha-se a tragédia do encerramento de uma carreira, quando se busca em um torneio a grande jogada para ser aclamado como o maior jogador. No segundo, trabalha-se o conflito do início de uma carreira, quando se busca em torneios a fama e a glória antes mesmo do despertar juvenil.

 

Em comum, têm também, prodigiosos talentos precoces, e tumultuadas infâncias, com reclusões familiares e uma penosa disciplina para tornarem-se geniais enxadristas. Treinos com tabuleiros vazios a serem calculadas jogadas de doze movimentos, para estimular a relação memória – pensamento abstrato – sentimento humano. Uma versão das partidas praticadas com os olhos vendados, para atestar poder de concentração, nível de instrução, memória visual, talento estratégico, entre outros. David Shenk em seu livro O jogo imortal (2007, p. 132) diz que “se fosse possível ver o que se passa na cabeça de um jogador [de xadrez], iríamos descobrir um irrequieto mundo de sensações, imagens, movimentos, paixões e um panorama sempre mutante de estados de consciência”.

 

Em O último lance, o roteirista desenvolve uma trama de vida e de morte. Uma disputa envolve dois grandes mestres de xadrez. Um excêntrico, que lida com seu comportamento depressivo em busca da jogada que lhe conferirá a redenção. O outro, um arrogante, que busca uma jogada tão somente para aniquilar o seu oponente, o único que poderia impedi-lo de tal façanha.

 

No meio desta trama desenvolve-se uma paixão. Uma jovem de classe social privilegiada aceita a corte de um jogador depressivo, de comportamento esquizofrênico. No entanto, nem essa paixão vai salvá-lo do seu trágico fim, obcecado pela descoberta da jogada de mestre, da jogada que lhe daria o título almejado, do seu último lance.

 

Melhor sorte teve o jogador de Lances inocentes, posto que conseguiu ainda criança vencer a obsessão do seu pai em fazê-lo um grande mestre do xadrez. Como disse Robert Burton, bibliotecário da Universidade de Oxford “o jogo de xadrez é um bom e sábio exercício da mente, para certos tipos de homens” e arremata: “mas se é proveniente de estudo em excesso, pode ser mais prejudicial do que bom. Trata-se de um jogo demasiadamente perturbador para a cabeça de certos homens”.

 

A história do xadrez está repleta de demonstrações de que ele reforça algumas mentes, enquanto escraviza outras. Isso pode ser conferido nos dois filmes aqui citados, e deixam uma certeza: o jogo de xadrez é visto ou como diversão ou como ciência. Não há meio termo.

 

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O último lance, EUA, 2000. Drama. Direção: Marleen Gorris. Roteiro de Peter Berry, baseado no livro The Luzhin Defense de Vladimir Nabokov. Com: John Turturro, Emily Watson, Geraldine James, Stuart Wilson, Christopher Thompson, Fabio Sartor.

 

Lances inocentes, EUA, 1993, Drama. Direção: Steven Zaillian. Roteiro: Fred Waitzkin, Steven Zaillian Com: Max Pomeranc, Joe Mantegna, Joan Allen, Ben Kingsley, Laurence Fishburne, Hal Scardino.


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo