CINEMA


MIL PERGUNTAS

Chico Buarque em “Mil perdões” (1984) evoca a reflexão sobre perguntas em relacionamentos. E o faz perdoando alguém por fazer “mil perguntas / que em vidas que andam juntas / ninguém faz”. O que pode parecer ridículo revela-se um componente importante dentro da literatura, ou dentro da arte de forma geral. O que se esboça é a perspectiva do domínio e posse do outro, ao querer saber todos os caminhos trilhados pelo parceiro, mas também pode ser o sentimento da perda, o nexo com o passado próximo, que guarde revelações mais fortes e que pode ser revivido e revitalizado.

 

Assim é que perguntas, palavras que definem território, que se impõem pela firmeza, são essenciais para a fundamentação teórica, por exemplo. Para se estabelecer algum texto, é preciso fazer perguntas. Não existe texto sem um problema que o gere, ou seja, sem uma questão que se apresente. Num relacionamento as perguntas não são incômodas por si só; o que soam incômodas são as respostas. Para quem as recebe se não são do agrado, e para quem as dá se não são confortáveis.

 

O que se observa é que as perguntas surgem naturalmente no transcurso dos acontecimentos. E não há que se imputar a responsabilidade só para quem as faz; evidente que no estabelecimento dos segredos da intimidade os fatos se revelam, conscientemente. Há um jogo de cena, de interesse mútuo, para que as cortinas sejam descerradas e as revelações sejam projetadas. Neste sentido, as perguntas são ingredientes dos relacionamentos, seja para afirmá-los, seja para negá-los.

 

Assim que vi a trama de Fatal (EUA, 2008), um belo filme de Isabel Coixet: a discussão sobre uma relação em que as perguntas movimentam um dos personagens. Um professor de literatura, David (Ben Kingsley), envolve-se com sua ex-aluna Consuela (Penélope Cruz), e a partir daí não tem mais paz. Não que a moça, belíssima na sua juventude, ataque a tranqüilidade do homem, charmoso na sua maturidade. Ele próprio encarrega-se de se atacar. E o faz com o despropósito de perguntas que encarnam o ciúme.

 

Na verdade, não é o ciúme o cerne da questão, mas a presença da fragilidade de homem maduro frente à tão bela jovem. Não há como rivalizar com os jovens que, na sua imaginação, circulam ao redor de Consuela. Instala-se a dúvida, personalizada na vida pregressa da amante. O que fazia Consuela antes, com quantos homens tinha vivido sua intimidade? Como a tinham amado? Seria ele apenas um amante a mais? Seria ele o personagem para saber como se faz amor com um velho, como insinua o seu grande amigo e companheiro de literatura George (Dennis Hopper), um ganhador de um prêmio Nobel.

 

O componente intrigante, é que por ser David um homem com um relacionamento sólido, de liberdade individual fincada e liberto na arte das palavras, a este não caberia fazer perguntas. Ou este componente é revelador no sentido de esta ser a tônica do comportamento do homem?

 

São as fragilidades de David, as suas dúvidas quanto ao sentimento de Consuela, que põem fim ao romance. Não se pode dizer que o mestre de literatura tenha um comportamento passional. Isso não. Há uma paixão, sim, mas que ele tenta evitar que aflore. A sufoca o quanto pode. E assim, na dor da sua paixão interiorizada, recolhe-se por não entender que a jovem o quer de verdade, e que ele não é apenas um amante velho, mas o amante. Há neste recolhimento uma verdade posta: David recolhe-se por não querer a composição familiar na sua paixão. Perpassa neste ato consciente a verdade de que está sendo ridículo ao expor-se perante a família de Consuela. E que a está expondo ao constrangimento.

 

Em Fatal, Isabel Coixet discute a relação entre um professor e uma sua ex-aluna, com diferença de mais de trinta anos de idade, sob dois aspectos: no ponto central está a aceitação social para o fato; no ponto periférico estão as perguntas que levam aos conflitos. David não tinha medo do social, apesar da sequência de comemoração do mestrado de Consuela indicar isto. Ele tinha medo de encarar os jovens que já tinham vivido a intimidade de sua amante. O sentimento de perda a que estaria exposto permanentemente, foi maior do que o sentimento de posse que poderia possuir.

 

P.S. – Após assistir ao filme pareceu-me estranho o título Fatal, pois não existe no enredo a discussão passional da relação. A discussão não é feita sob o prisma do determinismo, do inevitável, do destino, pois não está em jogo a paixão, mas a lamentação. Neste caso, melhor seria ter conservado o título original “Elegy”, traduzido para “Elegia” em português, coerente com o que se vê na tela, pois o filme é um canto plangente, onde a ternura e a tristeza se fazem presentes. Bem, talvez com este título, no Brasil, ele não tivesse público.

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FATAL, EUA, 2008. Drama. Direção: Isabel Coixet. Roteiro: Nicholas Meyer, baseado em livro de Philip Roth. Elenco: Ben Kingsley (David Kepesh), Penélope Cruz (Consuela Castillo), Dennis Hopper (George O'Hearn), Peter Sarsgaard (Kenneth Kepesh), Patricia Clarkson (Carolyn).


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo