CINEMA


BAUDRILLARD, POLANSKY E GODARD: AS GUERRAS ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE

Em visita ao Brasil no ano de 2003, por ocasião da Bienal Internacional do Rio de Janeiro, para a qual veio como convidado para lançar o livro Power inferno, Baudrillard fez dois comentários polêmicos. Um deles disse respeito à guerra do Iraque, afirmando que a mesma era um "não-acontecimento".

Para entender o que era um "não-acontecimento" visitei o dicionário e vi que acontecimento é um fato que causa sensação. É um episódio, um caso notável, uma ocorrência. O não-acontecimento seria, então, uma negação do fato. A tese de Baudrillard é a de que a guerra do Iraque foi uma contraposição ao acontecimento de 11 de setembro nos EUA, e que, justamente, por tal condicionamento, ela não aconteceu. A discussão centra-se, então, sobre o que é (foi) real e virtual em uma guerra que virou guerrilha urbana.

Para Baudrillard, as guerras não acontecem porque não apagam os acontecimentos ocorridos. Isso, no entanto, não elimina a eminência de confrontos, sejam eles políticos, sociais, religiosos ou culturais. No fundo todos eles são culturais. Tudo nos é exposto através da mídia e até as informações são também conflitantes.

Ao afirmar que a guerra do Iraque é injustificável e não faz sentido, o autor de Power inferno anuncia que o importante é descobrir o significado da guerra. Admite que diante dela pouco resta a fazer, pois a guerra é um objeto perdido. Sobre o conflito específico do não-acontecimento iraquiano, registra-se aqui que não só essa guerra, como coloca Baudrillard, mas todas são injustificáveis, não fazem sentido - é necessário buscá-lo.

Os confrontos entre as diferentes culturas formatam as guerras, muito embora a admissão atual saia do eixo cultura e religião e centre-se no tema globalização. É isso que mostra o filme O pianista, de Roman Polanski. É isso que mostra o filme Tempo de guerra, de Jean Luc Godard. Globalização em períodos históricos em que o tema ainda não era visível. Na globalização esconde-se, ou mostra-se, além da ordem econômica e política, a ordem religiosa e cultural. O gueto de Varsóvia, revisitado por Polanski, quando judeus tiveram seus espaços geográficos delimitados e foram perseguidos impiedosamente, constitui a representação de uma guerra que mexe com a cultura de um determinado povo, que colocou em lados opostos várias culturas de várias nações.

Em Tempo de guerra (Les carabiniers), Godard mostra como o imaginário constrói a partir de uma representação frágil, um reino imaginário, um acontecimento - a guerra. Os camponeses mobilizados pelo governo saqueiam, atiram, matam, violentam e violam as leis internacionais. Fazem isso em nome do patriotismo; fazem-no de forma consciente, pois são soldados lutando por seu país, da mesma forma que os soldados de O pianista. Tudo isso é um acontecimento.

Os medos interiores do terror de uma guerra são um "não-acontecimento" porque, embora existam, eles não acontecem. É uma imagem conceitual, pois aos enviados da pátria tudo pode. Tudo se faz em nome da liberdade, da confirmação da soberania, da restituição da democracia. Embora o medo exista, ele não é exteriorizado: então ele não acontece. Mas quando o medo cede lugar ao patriotismo, torna-se acontecimento. O mesmo soldado que mata friamente, saqueia e exercita a violência no filme de Godard, é o mesmo que ingenuamente apodera-se 'virtualmente' de símbolos do capitalismo, para resgatá-los ao fim da guerra, previamente vitoriosos por ordem do governante. Desse modo, os valores revelam-se universais, independente da guerra, do período e do fato que a determinou ser do tipo acontecimento ou 'não-acontecimento'.

As guerras e as 'não-guerras', os acontecimentos e os 'não-acontecimentos' deixam marcas na história. Não há como afirmar que algo é um 'não-acontecimento', o que mostra que a propositura virtual é real. E cada dia fica mais difícil separá-las.

No caso do 'não-acontecimento' Iraque, as marcas culturais do pós-guerra serão profundas pela destruição física da história de um dos períodos mais importantes da humanidade. Esforços conjuntos (antropólogos, arqueólogos, historiadores, pesquisadores de várias áreas) já se delineiam para tentar reunir, recuperar e salvar a cultura das civilizações que formam o período agora devastado. Isso é real.

Os 'não-acontecimentos', assim como os acontecimentos, passam e deixam marcas. Lições? A depender do pensamento de Jean Baudrillard, nenhuma, pois a guerra é um objeto perdido. No entanto, guerra configura-se real e a realidade não é ilusória. Pode até ser a representação do imaginário, como em Tempos de guerra, de Godard. Mas são reais como em O pianista, de Polanski, ou na transmissão televisada da guerra do Iraque. Os 'não-acontecimentos' revelam-se acontecimentos com toda uma carga virtual impiedosamente real.


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo