CINEMA


DUO SECRETO

O filme não é notável, mas os seus personagens sim (talvez os atores falem por eles). Um Reitor de uma pequena universidade e uma faxineira da mesma instituição. Está criado um casal perfeito para dar o que falar: ele um setuagenário, ela uma trintona no viço dos seus anos sem ter nada a ver com Balzac. Ele, viúvo; ela, também livre, mas de marido vivo e indócil. Ingredientes por demais contrários, social e sexualmente. Juntos em uma história de amor, do ponto de vista de um dos envolvidos, o homem; e uma história de sexo, para a outra parte envolvida, a mulher.

Fica claro que o envolvimento, acima do amor e do sexo, e, em princípio, longe de qualquer paixão, é resultado da solidão. Ambos rompidos com o hábito do estar acompanhados: um pelo aspecto natural da vida (a morte da companheira) e o outro pelo aspecto bestial da vida (o machismo intolerante mesmo que escudado na paranóia pós-Vietnã). Encontram-se por estarem tão somente carentes de companhia. Tudo por acaso. Como resultado da solidão tem-se a necessidade de companhia, e o que num rompante erótico toma forma de amor em um, é puro sexo para o outro. O que fica claro em um dos diálogos quando a expressão "fazer amor", empregado pelo Reitor, é substituída por "transar" pela faxineira. Discriminação nesta minha insistência das figuras representadas pela academia e fora dela?

Mas é disto que o filme trata. Racismo e preconceito. Mais uma vez misturados em uma boa trama de desejo. Desta vez, o racismo e o preconceito vêm bem arquitetados em argumentos segredados. Segredo que guarda a sete chaves Coleman Silk, um bem sucedido professor de Letras Clássicas e guindado ao posto de Reitor. Ao ter sua vida arruinada por uma acusação de racismo, seu mundo de farsa vem abaixo. A morte da esposa precipita a sua dor interior pela busca de justiça, que seria feita através da escrita de um livro.

Coleman se vê diante de um fato que irá mudar a sua trajetória de vida: a encantadora e misteriosa Faunia. Aí entra outro personagem com seus segredos, para fechar o argumento do filme. Segredos são revelados em confiança que vai transformando um envolvimento despretensioso em paixão. Isso dá forças a Coleman para revisitar o passado e liberá-lo da até acusação materna de assassinato (morte do pai e extermínio simbólico da família). A libertação vem nos braços de Faunia, a contar a sua saga racista em busca de uma certidão que lhe confira o status de branco.

Expor a sua verdadeira identidade, negada até a morte da sua esposa, justamente para não expor o seu passado, não foi um ato isolado de generosidade, mas um jogo de correspondência por ter a misteriosa Faunia despojado-se de todos os seus segredos. Nada mais restava a Coleman, no jogo da sedução, já envolvido em uma paixão que superava os olhares do escândalo. Veja-se neste contexto, o questionamento do seu advogado: ela é soronegativa? usa camisinha? está grávida? vai solicitar exame de paternidade? Nada disso, no entanto, tinha importância para Coleman. Depois da desonra da acusação de racismo, da perda da mulher, encontrar Faunia foi reviver, foi celebrar a ciência e festejar a descoberta de medicamentos potencializadores do sexo masculino. Foi descobrir que precisava se libertar dele mesmo, do seu racismo, para poder viver com uma mulher também marcada pela vida.

Como não há segredo que nunca deixe de ser confessado, como não há passado que seja esquecido, e como o silêncio é insuportável, Coleman encontra nos braços de Faunia a terapia para o seu desassossego e resolve quebrá-los em confissões à mulher amada, que já tinha percorrido o mesmo caminho com o próprio. Era o duo necessário para que segredos fossem revelados para o espectador.

Ao embalar o seu amor por uma jovem que poderia ser sua neta o personagem Coleman dá a todos os amantes na penumbra do cinema o poder inebriante do desejo e da paixão. Um diálogo é dos mais inquietantes: diz da descoberta do amor em tal idade, e da intensidade com que ele chega, algo tão forte que é impossível não vivê-lo. Ao ouvirem e lerem esse diálogo, travado com um personagem coadjuvante, e outros entre Coleman e Faunia, quantos hão de se terem transportado para a tela. Vendo-se personagens a desfilar seus segredos, quantos não hão de terem agarrado-se aos diálogos como forma catártica.

Catarse que se pode sentir em uma frase de Chico Buarque "Duas pessoas não se equilibram muito tempo lado a lado, cada qual com seu silêncio". Até porque não existe segredo de dois. O passado sempre será incômodo e revisitado. É preciso então se curar do passado para enfrentar um novo futuro. É o que fez Coleman, secundado por Faunia. Como disse Tennessee Wiliams: "Estamos todos condenados à prisão perpétua, em solitária, dentro de nossas próprias peles." Alguns conseguem libertar-se, outros não. No caso de Coleman, a liberdade chegou muito tarde. No de Faunia, também.

Revelações. EUA, 2003. Direção de Robert Bentom. Com Anthony Hopkins, Nicole Kidman, Gary Sinise e ED Harris. Drama baseado no romance de Philip Roth, The Human Stain.


   411 Leituras


Saiba Mais





Sem Próximos Ítens

Sem Ítens Anteriores



author image
JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo