CINEMA


A VOLTA DO SHOW DE THURMAN E O ESPETÁCULO DE TARANTINO

Na passagem meteórica que tive na Fundação de Cultura da Cidade de Aracaju (Funcaju) comentei com duas pessoas da equipe (ambas atrizes) sobre um espetáculo musical. Corrigiram-me: música é show, espetáculo é próprio do teatro. Divergi da correção e continuei firme na minha assertiva, tempo em que, para meu consolo semântico, vi na retórica das trabalhadoras do teatro o corporativismo. Não me dei por vencido, apossei-me do Aurélio e mostrei que espetáculo é contemplação, é representação teatral, é exibição de cinema, é exibição de canto, dança ou música. No contraponto pode ser cena ridícula, como o corporativismo.

Pois bem, esse intróito com gosto de vingança serve para fazer um paralelo com um filme em cartaz que se insere na categoria de espetáculo: Kill Bill, volume dois. Um filme que honra a sétima arte e carimba-se como um espetáculo cinematográfico.

Enquanto Quentin Tarantino promove um espetáculo de cinema com uma narrativa, linguagem e estética que o confirma como um dos grandes diretores contemporâneos, já eternizado em verbetes enciclopédicos e em dicionários especializados, Uma Thurman volta à cena dando um show de interpretação (embora nada mais pudéssemos esperar dela tendo em vista o desempenho no volume um). Em suma: espetáculo e show em uma só manifestação artística, como a consagrar o cinema como a arte das artes.

Sobre o filme, recomendo ver o volume um antes do volume dois. Entretanto, a ausência do primeiro não prejudica o entendimento do segundo. Esse último é bem melhor que o anterior, mas o conjunto é soberbo. Na segunda parte (o filme é um só dividido em dois) o diretor retoma o argumento do primeiro e mostra cenas explicativas para a consumação da vingança exposta na seqüência. O "furor violento da vingança" como é definida a saga da noiva quase assassinada no altar (ou melhor, no ensaio do casamento - agora explicado na segunda parte) tem a dimensão exata do cálculo e da frieza que movem os vingadores e renovam, de forma clássica, a banal frase popular que "a vingança é um prato que se come frio".

Imagine um humano superar todos os horrores que possa viver para alcançar o seu objetivo de vingar-se de alguém. Esse é o papel de A Noiva (Uma Thurman): superar a si mesma, para fazer justiça a si mesma.

Embora sem a sangria desatada do vol. um, o novo Kill Bill continua inverossímil na saga de lutas e mortes. Cenas impensáveis são absorvidas com aprovação. Uma delas é a seqüência em que a protagonista principal é enterrada viva e consegue "ressuscitar". Um espectador menos avisado pensaria tratar-se de um filme escatológico daqueles que proclamam a volta dos mortos ao convívio dos vivos. O que redime tal seqüência, o que faz com que seja aceita é a explicação (recurso muito utilizado por Tarantino para inserir o vol. um no vol. dois) mostrando os ensinamentos de Pai Mei. Um treinamento de sobrevivência e superação na determinação do furor violento da vingança. Na primeira parte já havíamos testemunhado um outro treinamento, desta vez com Hattori Hanzo, mestre na arte da espada.

Mas justiça seja feita, o vol. dois é humano (contrário do primeiro). Há diálogos sensatos e exaltação ao amor (afinal mesmo por vias tortuosas, todos amam). O que, no entanto, não permite o perdão, a anulação do ato desejado da vingança.

A cena final é a demonstração do resultado do aprendizado a que foi submetida Kiddo (A Noiva), seja com a consumação da vingança (e a surpreendente aplicação da técnica da implosão do coração com as pontas dos dedos), seja com a transformação da criatura (da fera à bela, embora a fera sempre tenha sido bela) pela necessidade materna. E é isso que ajuda no encadeamento do argumento: o instinto materno. Primeiro, quando da decisão de abandonar o mundo do crime por encomenda ao descobrir-se grávida e depois, quando sabe da existência de uma filha que julgava morta.

A morte é o centro da discussão no volume dois, assim como no um, mas de forma contida. Anunciada, mas sem o deboche anterior. A seqüência inicial, do diálogo entre Kiddo e Bill às execuções dentro da igreja, deixa antever a morte e a vida que percorrerão o filme. Uma seqüência primorosa. Mesmo a morte sendo cultuada, durante todo o filme, não há como negar o desejo da vida. Para Mamba Negra (A Noiva) a ânsia de viver para vingar-se, e para encontrar a filha superam todas as instâncias da morte, própria do título do filme: Matar Bill.

Que vejam Bill. Um filme que se insere na categoria dos espetáculos.

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Kill Bill Vol. 2. EUA, 2004. De Quentin Tarantino. Com Uma Thurman, David Carradine, Michael Madsen, Daryl Hannah.


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo