ALÉM DAS BIBLIOTECAS


ENCONTRO NO CÉU AZUL

Perdas irreparáveis, ao mesmo tempo, perdas que se transmutam em herança eterna, sob a forma de produção intelectual, e, sobretudo, de vida digna, tributos que seguem além da morte. Estamos nos referindo à passagem para o outro lado (seja lá o que isso signifique) de três grandes intelectuais brasileiros, que deixaram um rastro de luz azul em seu caminho. Intelectuais no sentido estrito do termo: pessoas com dotes de espírito e de inteligência, aliados à criatividade elevada “temperada por ingredientes” cognitivos e perceptivos, a exemplo da originalidade, da sensibilidade diante de situações novas e da flexibilidade.

 

João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro ou, simplesmente, João Ubaldo Ribeiro, Rubem Azevedo Alves e Ariano Vilar Suassuna, com perspicácia e produtividade, enfrentaram o longo caminho da criatividade e da criação, deixando ao povo brasileiro um legado ímpar e a confirmação de que a dicotomia entre cultura erudita e popular ou alta e baixa cultura ou, ainda, verdadeira cultura e mero lazer é ultrapassada e inglória. A cultura é uma só, refletindo, sempre, tendências e perspectivas de determinado momento histórico ou determinado grupo social. E, de fato, o trio que parte aos céus, coincidentemente, neste mês de julho, com sua vasta e diferenciada obra, contribuíram (e vão continuar contribuindo) para a inclusão social, para nossa diversidade cultural e para o avanço social brasileiro.

 

Primeiro, o baiano João Ubaldo, escritor, jornalista, roteirista e formado em Direito, parte no dia 18, aos 73 anos. Não nos deixa órfãos. Alia ficção e brasilidade em obras célebres, como “Viva o povo brasileiro” e outras mais, algumas das quais transportadas para o cinema e para a TV, como “Sargento Getúlio”, “O sorriso do lagarto” e “A casa dos budas ditosos”. No dia seguinte, dia 19, aos 80 anos, lá se vai o mineiro Rubem Alves, incrível pedagogo, cronista, escritor, ensaísta, filósofo, contador de histórias, psicanalista e teólogo, inclusive, inspirador da chamada “Teologia da Libertação”.

 

Mais recentemente, dia 23 de julho, 87 anos, é a vez do dramaturgo e poeta paraibano, radicado em Pernambuco, Ariano Suassuna, nosso “Cavaleiro Andante”, que se imortalizou por sua luta quase insana em prol da cultura brasileira e nordestina, em particular, atingindo, no entanto, a universalidade. Também com obras adaptadas ao cinema, ao teatro e à TV, se celebrizou em peças, como “Uma mulher vestida de sol”, “d’A pedra do reino” e “Auto da compadecida”. Tal como Ubaldo, foi membro da Academia Brasileira de Letras, com formação em Filosofia e em Direito.

 

O justo seria um elogio fúnebre – homenagem que se faz em honra de quem parte – para cada um dos três, em particular. Na impossibilidade de espaço midiático a nosso alcance, transcrevemos um dos textos de Rubem Alves que incita a reflexão do próprio viver. Isto porque, surpresa com nota divulgada na imprensa piauiense, segundo a qual é possível que notas de pesar que encheram páginas do facebook fossem de pessoas que nem sequer saberiam quem foi esse grande educador, decidimos seguir os passos da companheira cibernética, Simone Pessoa. Transcrevemos, assim, talvez para maior número de pessoas, palavras cheias de significado do grande poeta.

 

Como adendo, acrescentamos que alguns de meus alunos e ex-alunos devem se lembrar da inclusão de obras de Rubem Alves nas bibliografias indicadas para eles no decorrer dos anos. Na nossa tese de doutoramento, ano 1998, como epígrafe central, já consta transcrição do autor, que rege há muito tempo minha vida acadêmica – "[...] toda a ciência seria inútil se, por detrás de  tudo  aquilo  que  faz os  homens conhecer, eles não se tornassem mais sábios, mais tolerantes, mais mansos, mais felizes, mais bonitos [...]" Vejam, então, mais palavras sábias de um de nossos homenageados.

 

CONTEI MEUS ANOS

Rubem Alves

 

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora.

 

Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltavam poucas, rói o caroço.

 

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.

 

Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.

 

Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

 

Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos.

 

Já não tenho tempo para conversas intermináveis para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.

 

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas que, apesar da idade cronológica, são imaturas.

 

Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral ou semelhante bobagem, seja ela qual for.

 

Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...

 

Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados, e deseja tão somente andar ao lado de Deus.

 

Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade, desfrutar desse amor absolutamente sem fraudes, nunca será perda de tempo. O essencial faz a vida valer a pena. Basta o essencial!


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”