INFORMAÇÃO E SAÚDE


A FATURA DE ÁGUA ENQUANTO FONTE DE INFORMAÇÃO: O ACESSO COGNITIVO EM QUESTÃO

Maria Cristiane Barbosa Galvão

Fábio de Jesus Fumis

Ivan Luiz Marques Ricarte

Janise Braga Barros Ferreira

 

Introdução

 

Informações sobre água são primordiais para todos, sendo a escassez de água uma das temáticas que ocupa a agenda da humanidade e dos meios de comunicação de massa no século XXI. Esta escassez tem diversas origens, dentre as quais o uso inadequado dos recursos hídricos, o crescimento da população e a expansão das atividades econômicas. Considerando este contexto, muitas são as alternativas apontadas como possível solução para o não desperdício de água, como o estabelecimento de políticas voltadas ao consumo limitado da água ou de seu reuso em determinadas situações (HESPANHOL, 2008; SANT´ANNA, 2010; TUNDISI, 2003, 2008). Em revisão de literatura, Hurlimann, Dolnicar e Meyer (2009) observam que o comportamento relacionado ao uso da água é decorrente de características pessoais e demográficas da população, características do contexto local, normas e costumes sociais antigos e atuais, bem como pelas intervenções realizadas a fim de disseminar conhecimentos e informações sobre a água.

 

No cenário da saúde, tem-se a preocupação com a qualidade da água consumida pela população com relação à doença que pode ter nela sua origem (água com concentração de substâncias químicas tais como chumbo, nitratos e pesticidas, inadequadas para o consumo humano) ou ser por ela transmitida (água como veículo de patógenos) (SIQUEIRA et al., 2010). A escassez da água pode se relacionar à disseminação de doenças, pois esta condição limita o asseio corporal e do ambiente. São exemplos destas doenças: tipos de diarreias, afecções dermatológicas e infecções por ectoparasitas, entre outras. Entre as doenças de origem hídrica destacam-se a fluorose, o saturnismo e carcinomas, enquanto que a hepatite infecciosa, a poliomielite, a cólera, tipos de gastroenterites, a amebíase, a giardíase, entre outras, são exemplos de doenças causadas por diferentes agentes (vírus, bactérias e protozoários) transmitidos pela água.

 

Pautando-se nas questões acima, priorizou-se neste texto a análise da fatura de água enquanto fonte de informação para a população, pois este documento, distribuído mensalmente pelas empresas de saneamento, traz informações relevantes que, se compreendidas e assimiladas pela população, podem gerar um uso consciente da água.

 

Metodologia

 

O estudo de caráter quantitativo-exploratório foi desenvolvido em um município com 45 mil habitantes, no interior do Estado de São Paulo, Brasil. Tal município possui parte da economia decorrente da diversificação da cultura agrícola, com predominância na cultura da cebola, manga, limão, goiaba, laranja, cana-de-açúcar. O estudo contemplou 102 entrevistas com maiores de 18 anos, realizadas em 2008, portanto, anos antes da crise hídrica no Estado de São Paulo. Tais entrevistas ocorreram em dias úteis, das 14 às 17 horas, nos domicílios de quatro bairros: bairro de moradia popular; bairro de moradia média; bairro de moradia nobre; e bairro comercial. Assim, a coleta de dados foi realizada em regiões do município com características socioeconômicas distintas. A seleção dos entrevistados foi realizada de modo aleatório simples, na qual cada membro da população tem a mesma probabilidade de ser escolhido. Na análise dos dados utilizou-se a estatística descritiva das variáveis quantitativas (frequência relativa).

 

Resultados

 

Os questionários foram respondidos por 33 homens (32%) e 69 mulheres (68%), com a maioria (26 homens e 64 mulheres) na faixa de 25 a 60 anos.

 

Inqueridos sobre onde obtém informações sobre água, nenhum entrevistado apontou a fatura como fonte de informação sobre água. A principal fonte de informação sobre água reconhecida pelos entrevistados foi associada aos meios de comunicação de massa, com 82% das respostas. A fonte de informação com segundo maior número de respostas varia de acordo com o perfil do bairro. Enquanto nos bairros nobre e comercial a Internet é apontada como fonte de informação por 13% dos entrevistados desses bairros, nos bairros popular e médio a segunda fonte apontada é constituída por amigos, familiares ou vizinhos, com 8% das respostas. As instituições formais de ensino são pouco referidas pelos entrevistados como fontes de informação sobre água (2% das respostas), independentemente do nível de escolaridade dos entrevistados.

 

Quando inqueridos sobre como obtém informações sobre a qualidade da água, embora tal informação esteja presente no verso da fatura, apenas 14% dos entrevistados afirmaram obter a informação por meio da fatura. A maioria (54%) afirma observar diretamente a água para verificar sua qualidade, enquanto os demais afirmam não ter conhecimento sobre a qualidade da água que consomem. Assim, os entrevistados não percebem a fatura como uma fonte de informação sobre a qualidade da água.

 

Ao serem questionados a respeito da primeira informação que visualizam na fatura de água, 91% visualizam primeiro o campo total a pagar e vencimento. Inqueridos se observam na fatura como é calculado o valor a ser pago, 75% dizem que a fatura não informa o cálculo usado para definir os valores, embora esta informação exista na fatura.

 

Quanto à facilidade para encontrar na fatura informações sobre o consumo de água, 54% afirmam não encontrar com facilidade essas informações, 42% alegam que as localizam com facilidade e 4% dizem que localizam algumas informações. Em relação a esse aspecto, observa-se uma grande diferença entre os entrevistados do bairro nobre e aqueles dos demais bairros. Enquanto no bairro nobre a maioria (85%) afirma encontrar informações sobre consumo com facilidade, nos demais bairros a maioria afirma não ter facilidade: 64% no bairro médio, 68% no bairro comercial e 80% no bairro popular. Assim, é possível observar a importância da escolaridade na compreensão da informação da fatura.

 

Quanto às informações contidas na fatura sobre multa, atualização monetária e juros, 32% dizem que a fatura traz informações sobre multa, atualização monetária e juros, 66% dizem que a fatura não traz tais informações e 2% dizem que a fatura traz algumas destas informações.

 

Discussão

 

Os dados coletados evidenciam que a fatura de água, apesar de ser um documento conhecido e acessível fisicamente pela população, tem um conteúdo informacional que não é apreendido pela maioria de seus leitores. Aliás, é marcante o fato de nenhum entrevistado ter reconhecido espontaneamente a fatura como uma fonte de informação sobre a água.

 

O estudo também tornou evidente que a organização informacional da fatura de água permite que seu conteúdo seja compreendido de forma mais ampla apenas pelas camadas mais favorecidas da população. Por exemplo, em relação à informação sobre o consumo de água, os que conseguem em sua maioria perceber essa informação no documento são os entrevistados do bairro nobre ou aqueles com ensino superior. Este dado pode indicar algum grau de dificuldade para compreender a importância de tal informação ou o quanto a fatura é de difícil acesso cognitivo para a maior parte da população.

 

Pelo exposto, evidencia-se que os fatores sociais, econômicos e culturais influenciam a leitura e compreensão da fatura de água, bem como o acesso cognitivo às informações que são nela apresentadas. Também parece ficar claro a falta de atenção da empresa de abastecimento de água em prover informações que sejam adequadas à preservação e ao uso adequado dos recursos hídricos.

 

Conclusão

 

Observou-se que embora os entrevistados tivessem acesso físico mensal ao documento fatura de água, este acesso não foi acompanhado, para a maioria dos entrevistados, de um acesso cognitivo aos conteúdos informacionais do documento. Assim, há uma dissociação entre o acesso físico ao suporte da informação e o acesso cognitivo à informação, já que o acesso cognitivo não é garantido pelo acesso físico. Pode-se compreender que o acesso cognitivo ao conteúdo informacional presente na fatura de água ocorre mais facilmente para aqueles que possuíam um nível de escolaridade mais elevado, que, concomitantemente, foram os entrevistados de maior renda mensal. Os entrevistados economicamente menos favorecidos e os com menor escolaridade, por outro lado, foram aqueles que mais se manifestaram quanto a não compreensão das informações presentes na fatura de água, ou seja, foram aqueles que tiveram menos acesso cognitivo às informações disponibilizadas.

 

Logo, evidenciou-se que mesmo que um documento seja fisicamente disponibilizado para todos, em diferentes classes e contextos sociais, não significa que ele será lido, compreendido e assimilado de forma semelhante, a ponto de transformar a ação das coletividades. Assim, o acesso físico ao documento não garante o acesso cognitivo às informações contidas no documento, sendo este último acesso reflexo de várias dimensões. Especificamente, neste estudo exploratório, observou-se que três variáveis parecem interferir no acesso cognitivo à informação. São elas: escolaridade, perfil socioeconômico e linguagem empregada na elaboração do conteúdo informacional.

 

Finalmente, no que se refere às informações sobre água, caberiam às empresas governamentais e privadas e às companhias de saneamento, que detêm um documento de circulação entre todas as camadas da sociedade, disponibilizar a informação apropriada em linguagem de fácil entendimento para todos, a fim de criar oportunidades para o desenvolvimento do conhecimento da população – a começar pelas temáticas relacionadas à qualidade de vida da população e ao meio ambiente que a afeta diretamente. Desse modo, será possível utilizar efetivamente o potencial informacional de um documento que chega a todos os domicílios e empresas mensalmente.

 

Referências

 

HESPANHOL, I. Um novo paradigma para a gestão de recursos hídricos. Estudos Avançados, v. 22, n. 63, 2008.

 

HURLIMANN, A.; DOLNICAR, S.; MEYER, P. Understanding behavior to inform water supply management in developed nations: a review of literature, conceptual model and research agenda. Journal of Environmental Management, v. 91, n. 1, p. 47-56, 2009.

 

SANT’ANNA, T.L. Uso e preservação dos recursos hídricos: aspectos jurídicos. Revista do BNDES, v.33, p. 155-176, jun. 2010.

 

SIQUEIRA, L.P. et al. Avaliação microbiológica da água de consumo empregada em unidades de alimentação. Ciência & Saúde Coletiva, v.15, n.1, p.63-66, 2010.

 

TUNDISI, J.G. Água no século 21: enfrentando a escassez. (?): RIMA/IIE, 2003.

__. Recursos hídricos no futuro: problemas e soluções. Estudos Avançados, v. 22, n. 63, p. 2008.

 

Créditos

O bibliotecário Fábio de Jesus Fumis e a Profa. Dra. Maria Cristiane Barbosa Galvão idealizaram o estudo. Fabio de Jesus Fumis realizou as entrevistas e a análise inicial dos dados. O Prof. Dr. Ivan Luiz Marques Ricarte colaborou na análise estatística e interpretação dos dados. A Profa. Dra. Janise Braga Barros Ferreira colaborou no estabelecimento da relação entre informações sobre água e saúde humana, e na interpretação dos dados. A Profa. Dra. Maria Cristiane Barbosa Galvão colaborou na conexão entre acesso físico e acesso cognitivo à informação, na interpretação dos dados e produziu uma versão simplificada do estudo para o Infohome.

 

Como citar este texto

GALVAO, M.C.B. et al. A fatura de água enquanto fonte de informação: o acesso cognitivo em questão. 13 de agosto de 2015. In: Almeida Junior, O.F. Infohome [Internet]. Londrina: OFAJ, 2015. Disponível em: http://www.ofaj.com.br/colunas_conteudo.php?cod=920


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MARIA CRISTIANE BARBOSA GALVÃO

Professora na Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Sua experiência inclui estudos na Université de Montréal (Canadá), atuação na Universidad de Malaga (Espanha) e McGill University (Canadá). Doutora em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília, mestre em Ciência da Comunicação e bacharel em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade de São Paulo.