INFORMAÇÃO E SAÚDE


A INFORMATIZAÇÃO DO SISTEMA DE SAÚDE: A TECNOLOGIA É IMPORTANTE, MAS NÃO É TUDO

Juan Rodrigo Reys Miguel

Maria Cristiane Barbosa Galvão

 

Introdução

O sistema de saúde de um país é uma instituição cultural, social, industrial e informacional complexa que envolve

  • Processos de assistência em saúde, como a promoção da saúde, a prevenção e o tratamento de doenças;
  • Profissionais de vários níveis de competência e formação responsáveis por esses processos;
  • Instituições físicas e virtuais onde esses processos são desenvolvidos, incluindo-se aqui um consultório isolado, um hospital de alta complexidade ou uma consulta online;
  • Toda a população usuária dessa assistência.

Todos os processos que ocorrem dentro de um sistema de saúde devem ser registrados e armazenados em completa segurança. Isso abarca desde o registro de frequência dos profissionais de saúde, assistência prestada a cada pessoa, produtos utilizados na assistência, equipamentos disponíveis e assim por diante.

Por todas essas razões, um sistema de saúde não é capaz de sobreviver sem sistemas de informação que funcionem. Geralmente, situações caóticas nos sistemas de saúde estão relacionadas com algum processamento equivocado de informação.

Este texto tem por objetivo discutir algumas dimensões relacionadas à informatização do Sistema de Saúde brasileiro, incluindo: a conectividade da população; a educação continuada dos profissionais da saúde; a infraestrutura tecnológica; e a rotatividade dos gestores públicos.

A conectividade da população

O uso de tecnologias de informação e o acesso à Internet não são universais. Pelo contrário, existe muita diversidade de uso da tecnologia e de conectividade em um país com proporções continentais como o Brasil.

Estudo realizado por Darsie et al. (2022) demonstra, por exemplo, que, durante a pandemia, os universitários (alunos e professores) que tiveram mais horas de acesso à Internet foram aqueles das Regiões Sudeste e Sul, evidenciando que as regiões possuem diferentes formas e possibilidades para se apropriarem das tecnologias.

De acordo com o Comitê Gestor da Internet no Brasil (2021), nos centros urbanos, 83% dos domicílios possuem acesso à Internet. Já nas zonas rurais, os domicílios com acesso à Internet caem para 71%. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, nos domicílios onde não há a utilização da Internet, 25,7% dos residentes afirmaram não ter nenhum morador que saiba usar a Internet. Entre os principais problemas para a falta de conectividade dos brasileiros estão: a falta de interesse; o custo elevado do serviço de Internet; a falta de conhecimento no uso de dispositivos que usam Internet e a indisponibilidade do serviço de Internet (INSTITUTO, 2019).

Considerando esses dados, embora a informatização do Sistema de Saúde venha a atender uma parcela expressiva da população brasileira, ela não atinge ainda a totalidade das regiões e da população. Sabe-se que em um sistema de saúde plenamente informatizado, muitos dados são enviados, processados e consultados via Internet, seja pelos profissionais de saúde, seja pela população.

Logo, no caso brasileiro e de muitos países, não é suficiente uma preocupação com os processos de informatização do Sistema de Saúde em si. A discussão precisa ser ampliada, incluindo o desenvolvimento de políticas públicas que garantam a acessibilidade da população aos equipamentos (computadores, notebooks, celulares) que viabilizem o acesso à Internet, bem como a existência de políticas que garantam a conectividade das populações em áreas economicamente vulneráveis e remotas.

Também não é exagerado afirmar que ações de inclusão tecnológica e inclusão informacional precisam ser estabelecidas para grande parte da população a fim de que todos consigam navegar pelo Sistema de Saúde virtualmente, além de acessar seus dados e processos relacionados à assistência.

Educação continuada dos profissionais da saúde

Os recursos humanos são elementos essenciais para a implantação de estratégias em saúde digital. No entanto, a capacitação relacionada à informatização do sistema de saúde ainda é precária tanto para gestores que atuam nas diferentes esferas das unidades de saúde quanto para os profissionais da saúde que atuam diretamente na assistência (SOUZA-ZINADER; MARIN, 2019).

Nesse sentido, Rezende e Marin (2020) destacam iniciativas de formação de profissionais de saúde como a Technology Informatics Guiding Education Reform (TIGER - Reforma Educacional Orientada pela Tecnologia da Informação) cujo objetivo é desenvolver competências em informática em saúde com foco nos profissionais de nível superior.  Essa ferramenta, criada nos Estados Unidos, visa melhorar o cuidado ao paciente, oferecendo recursos e ferramentas tecnológicas para os estudantes da área da saúde desenvolverem habilidades em tecnologia e informática em saúde. O desenvolvimento de competências e habilidades em informática por meio de ações educacionais contínuas e permanentes é fundamental para que as políticas públicas de informatização voltadas à área da saúde sejam bem sucedidas.

Ainda sobre o aspecto da formação dos profissionais, destaca-se a formação de profissionais de tecnologia que trabalham na área da saúde. Existem diversas terminologias e particularidades da área da saúde que precisam ser consideradas ao desenvolver sistemas de informação no contexto da saúde, e que muitas vezes são desconhecidas por profissionais do campo da tecnologia da informação. Tais profissionais, embora possam ter um elevado domínio das ferramentas necessárias para elaboração de sistemas informacionais, não possuem necessariamente formação específica em saúde e/ou experiências prévias com esta área para que apliquem a tecnologia à favor do Sistema de Saúde, gerando sistemas inapropriados, ou seja, com funcionalidades não compatíveis às necessidades existentes.

A escassez de profissionais que possuam simultaneamente competências tecnológicas e conhecimentos no campo da saúde, bem como as diferenças salariais entre os setores públicos e privados, gera uma considerável ausência de profissionais qualificados para implementar políticas públicas de informatização no campo da saúde. Estes fatores geram grande rotatividade entre os profissionais o que acarreta muitas vezes na contratação de funcionários inexperientes ou que não se mantêm no cargo por muito tempo, onerando o desenvolvimento dos processos de informatização.

Outro fator relevante no pilar dos recursos humanos é a negligência de alguns profissionais da saúde com o registro adequado de atividades e processos nos sistemas de informação em saúde já existentes, seja por interesses pessoais, políticos ou econômicos. Fato que pode fragilizar a qualidade das informações e dados existentes no Sistema de Saúde, dificultando inclusive a assistência ao paciente e gerando retrabalho e processos jurídicos de variadas dimensões.

Infraestrutura tecnológica

A infraestrutura tecnológica é um grande desafio na gestão de dados em saúde e nas políticas públicas. Alguns sistemas de informação sequer possuem acesso por senhas, o que inviabiliza responsabilizar o funcionário que efetuou o preenchimento inadequado, além de que diversas prefeituras sequer possuem formas de garantir ao servidor um processo administrativo disciplinar que garanta a ampla defesa e que garanta que o servidor possa ser responsabilizado por atitudes de negligência.

Recursos financeiros são escassos para o investimento em infraestrutura física e tecnológica em saúde. Segundo Rezende e Marin (2020), as Unidades Básicas de Saúde responsáveis pela atenção primária se encontram menos informatizadas em relação ao restante das instituições de saúde, visto que em 2018 10% dessa Unidades não possuíam sequer computadores disponíveis, 20% não possuíam Internet disponível e 31% não possuíam sistema eletrônico para registro das informações dos pacientes.

As disparidades no acesso às tecnologias de informação entre as regiões também fazem parte dos desafios para a implementação de políticas públicas em saúde em nível nacional. A disparidade se dá entre os ambientes públicos e privados, onde 74% dos estabelecimentos de saúde públicos adotam registro eletrônico em saúde, ante 88% dos estabelecimentos de saúde privados. A disparidade também se dá entre regiões do país, onde na região Sul 90% dos estabelecimentos usam registro eletrônico, 83% utilizam na região sudeste, enquanto este número diminui na região Norte (74%), Nordeste (77%) e Centro-Oeste (78%).

Segundo o Comitê Gestor da Internet (2019), apenas 16% dos estabelecimentos públicos afirmaram possuir uma política de segurança de dados. Este é um desafio importante, uma vez que informações em saúde da população são dados sigilosos e devem ser protegidos.

A segurança das informações e dos dados é importante tanto em nível nacional quanto em nível municipal, porém, como assinalado anteriormente, a competência técnica dos usuários dessas tecnologias é limitada, o que acarreta na falta de segurança dos dados dos pacientes nos diversos âmbitos.

Rotatividade dos gestores públicos

A adoção de políticas públicas para o aprimoramento da atenção básica à saúde, apesar de possuir diretrizes nacionais, dependem do empenho de cada gestor municipal no que se refere à aquisição de insumos, contratação de profissionais com o perfil adequado, nomeação de gestores municipais em saúde com competência técnica, informacional e tecnológica em saúde, elaboração de diretrizes internas que devem ser acompanhadas pelas equipes de saúde, planejamento estratégico e educação continuada para os profissionais.

Como no Brasil há eleições a cada quatro anos nos municípios, muitas vezes, na troca do chefe do executivo, trocam-se também os gestores da saúde, acarretando uma mudança no planejamento e até nos procedimentos e sistemas de informática utilizados para gestão de dados em saúde, pelos mais variados interesses. Esta rotatividade de gestores, excluindo-se todas as características democráticas e inerentes ao estado de direito, pode gerar muitas vezes uma interrupção das ações em prol da gestão de dados em saúde nos municípios.

Conclusão

A informatização do Sistema de Saúde brasileiro deve ser pensada de forma sistêmica, sendo a tecnologia apenas um de seus componentes. É preciso dar atenção ao perfil da população, dos profissionais de saúde, bem como aos contextos nos quais estão inseridos.

Referências

COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. TIC Domicílios 2021. São Paulo: CGI, 2021. Disponível em: https://cetic.br/pt/pesquisa/domicilios/indicadores/ Acesso em: 25 nov. 2022.

DARSIE, C. et al. Diferenças regionais no uso de tecnologias no ensino superior em saúde durante a pandemia de Covid-19. Research, Society and Development, v. 11, n. 7, p. e36511730220-e36511730220, 2022. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/30220 Acesso em: 25 nov. 2022.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Uso de internet, televisão e celular no brasil. IBGE Educa. 2019. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/20787-uso-de-internet-televisao-e-celular-no-brasil.html. Acesso em: 25 nov. 2022.

REZENDE, V. M.; MARIN, H. de F. Educação em Informática em Saúde: competências para os profissionais da atenção primária à saúde. Journal of Health Informatics, v. 12, n. 4, 2020. Disponível em: https://jhi.sbis.org.br/index.php/jhi-sbis/article/view/765 Acesso em: 25 nov. 2022.

SOUZA-ZINADER, J. P.; MARIN, H. de F. A pesquisa TIC saúde e a formulação de políticas públicas da estratégia de saúde digital do Brasil. In: Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos estabelecimentos de saúde brasileiros: TIC Saúde. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2019. Disponível em: https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/15303120191017-tic_saude_2018_livro_eletronico.pdf Acesso em: 25 nov. 2022.

Como citar este texto

MIGUEL, J. R.R, GALVAO, M.C.B. A informatização do sistema de saúde: a tecnologia é importante, mas não é tudo. In: Almeida Junior, O.F. Infohome [Internet]. Marília: OFAJ, 2022. Disponível em: http://www.ofaj.com.br/colunas_conteudo.php?cod=1430


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MARIA CRISTIANE BARBOSA GALVÃO

Professora na Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Sua experiência inclui estudos na Université de Montréal (Canadá), atuação na Universidad de Malaga (Espanha) e McGill University (Canadá). Doutora em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília, mestre em Ciência da Comunicação e bacharel em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade de São Paulo.