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A REGRA DO JOGO NA REPRESENTAÇÃO DESCRITIVA

Nos últimos 50 anos, a catalogação tem passado por mudanças profundas em seus conceitos e processos. Após a Conferência Internacional sobre Princípios de Catalogação, ocorrida na cidade de Paris, em 1961, e da Reunião Internacional de Especialistas em Catalogação (RIEC), realizada na cidade de Copenhague, em 1969, os eventos transformadores na área se aceleraram, influenciados pelas novas tecnologias da informação ao longo das décadas e a disponibilização comercial da internet a partir dos anos de 1990. O período viu o aparecimento de modelos para a estruturação dos dados bibliográficos.

 

O tradicional catálogo impresso deixa de ser um jogo de cartas marcadas, para um jogo de estratégia na estrutura e organização de dados que permita a descoberta sobre determinado autor\criador, obra (em suas expressões e manifestações) e assuntos. Repassa ao catalogador a responsabilidade da representação dos recursos que sejam adequados às necessidades e aos interesses dos usuários nas suas buscas bibliográficas.

 

Se antes, catalogar era para a comunidade de prática bibliotecária uma atividade apenas técnica e operacional, na atualidade, se torna complexa, com procedimentos de análise intelectual, e baseada em fundamentos teóricos mais consistentes no subsídio à construção de registros para catálogos, repositórios, bibliotecas digitais etc.

 

Portanto, o mais destacado e popularizado código, o Código de Catalogação Anglo-Americano, 2a edição (AACR2) torna-se impactado pelas mudanças no ambiente bibliográfico. Detentor de um conjunto de regras operadas no paradigma da ficha impressa, e adotado no desenvolvimento de catálogos eletrônico e/ou em linha, e que agora está vitimado pela utilização e o intercâmbio crescente dos recursos digitais.

 

O AACR2 começou a ser reformado a partir da Conferência Internacional sobre Princípios e Desenvolvimento Futuros do AACR, realizada na cidade de Toronto, em 1997, e seguido de outros seis encontros: Leeds, Inglaterra (novembro de 1998); Brisbane, Austrália (outubro de 1999); San Diego, Estados Unidos (março de 2000); Londres, Inglaterra (setembro de 2000); Washington, Estados Unidos (abril de 2000); e Ottawa, Canadá (outubro de 2000).

 

Apesar da ampla discussão, esteve limitada ao círculo de pensamentos anglo-saxão, que visaram reconfigurar o tradicional código. Em 2004, durante o processo de revisão do AACR2, vinga a ideia de desenvolver um novo texto, inicialmente chamado AACR3, como um passo adiante o suficiente para não ser uma simples revisão como as realizadas desde 1978.

 

As novas instruções para o novo jogo da representação requerem, do bibliotecário, a leitura de alguns documentos para melhor compreender as mudanças concebidas na catalogação e na função dos catálogos no universo bibliográfico formado de recursos analógicos e digitais. As leituras indicadas são:

 

§  Requisitos Funcionais para Registros Bibliográficos (FRBR, 1998)

§  Descrição Bibliográfica Normalizada Internacional (ISBD, edição 2011)

§  Requisitos Funcionais para Dados de Autoridade (FRAD, 2009)

§  Declaração dos Princípios Internacionais de Catalogação (PIC, 2009)

§  Requisitos Funcionais para Dados de Autoridade de Assunto (FRSAD, 2011)

 

A catalogação é agora um processo de modelagem de atributos e seus relacionamentos, visualizados no catálogo online ou base de dados. Para esse jogo, o catalogador (brasileiro) deve estar aberto a uma mudança cultural nas suas práticas, crenças e procedimentos. Se antes a simplicidade descritiva estava em montar, ordenar e pontuar os dados, agora é metadados. Neste sentido, importa realçar os documentos basilares acima citados.

 

Requisitos Funcionais para Registros Bibliográficos

Com proposta surgida no Seminário de Catalogadores, realizado na cidade de Estocolmo, em 1992, e finalizada em 1997 pelo Grupo de Estudo sobre FRBR, da IFLA (Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias), definiu-se um modelo conceitual baseado em entidades-relacionamento (E-R) para o universo bibliográfico. Um modelo no qual o registro bibliográfico é entendido como provedor de informação que respondesse às necessidades de bibliotecários e usuários. As entidades constantes no modelo se dividem em três grupos:

 

§  Grupo 1, compreende o produto do esforço intelectual, ou artístico que se nomeia ou descreve nos registros bibliográficos: obras, expressões, manifestações e itens. Entidades que formam a base e metodologia do modelo.

§  Grupo 2, abrange as entidades responsáveis pelo conteúdo intelectual ou artístico, da produção física, da difusão, e da conservação dessa produção: pessoa, família e entidade corporativa, além do assunto.

§  Grupo 3, inclui um conjunto adicional de entidades que servem como temática ao esforço intelectual ou artístico: conceito, objeto, sucesso e lugar. São entidades empregadas como assunto das obras.

 

O conceito do modelo é, na atualidade, um dos mais empregados em aplicações que objetivam o desenvolvimento de bases de dados relacionais. É consenso entre a comunidade catalográfica, ao conceber o registro bibliográfico como uma agregação de dados que se associam com as entidades descritas em catálogos de bibliotecas. Os dados descrevem, representam e possibilitam a organização de documentos textuais, musicais, audiovisuais, cartográficos, gráficos e tridimensionais. O modelo opera no mapeamento das entidades que são de interesse dos usuários na consulta aos registros bibliográficos. 

 

A partir do conceito dos FRBR, os bibliotecários não necessitam recatalogar uma nova obra de forma completa para as suas diferentes manifestações. Torna possível que novas manifestações sejam descritas em separado e se vincule a obra previamente catalogada. O mapa de atributos e a orientação de interesses do usuário são definidas em quatro tarefas básicas:

 

§  Encontrar a entidade correspondente aos critérios de busca.

§  Identificar uma entidade.

§  Selecionar uma entidade apropriada às necessidades do usuário.

§  Obter o acesso à descrição da entidade.

 

O modelo não é código de catalogação, mas um sistema teórico que oferece suporte decisório aos catalogadores sobre o objeto que se encontra no catálogo.

 

Descrição Bibliográfica Normalizada Internacional

 

O programa ISBD da IFLA vem há décadas elaborando instruções para a representação bibliográfica de todos os tipos de recursos bibliográficos, bem como, subsídios para a determinação e atualização dos códigos locais, e a promoção das práticas de uso internacional. O conceito da ISBD oferece coerência no compartilhamento da informação bibliográfica e serve de instrumento ao Controle Bibliográfico Universal. Determina os elementos a serem registrados ou transcritos em uma ordem específica como base para a descrição do recurso. Emprega o uso de pontuação como forma de reconhecer e apresentar esses elementos tornando-os compreensíveis, independente da língua da descrição. A edição consolidada da ISBD reflete o esforço atual por uma descrição de todos os mais variados materiais em conformidade com os princípios dos FRBR. Destaque, na edição, para a Área 0 (da Forma do Conteúdo e do Tipo de Mídia), que elimina o antigo DGM (Designação Geral do Material) fixado na Área 1, além de outras mudanças introduzidas para maior harmonia com os novos tipos de recursos digitais.

 

Requisitos Funcionais para Dados de Autoridade

 

Afim de propiciar um padrão de análise para os tipos de dados de autoridade que necessitam da manutenção no seu controle, e para intercâmbio internacional dos dados, um modelo foi concebido pelo Grupo de Estudos sobre FRAD, da IFLA, que é uma extensão e ampliação do modelo FRBR. Tem como pressuposto que um catálogo, na biblioteca, no museu ou arquivo, é um conjunto organizado de dados que descrevem uma informação. Os dados de autoridade representam os pontos de acesso controlados e outras informações que as instituições utilizam para reunir obras de uma determinada pessoa, família, entidade corporativa ou as várias edições de um título. Os pontos de acesso controlados incluem as formas autorizadas e as formas variantes dos nomes reunidos, pelos catalogadores, para identificar uma entidade. O FRAD só aborda as entidades de nomes e de títulos; entretanto, nos catálogos são encontrados assuntos temáticos entre as entidades submetidas ao controle de autoridade e, cobertas, agora pelo FRSAD. O controle de autoridade significa que a identificação das entidades representadas pelos pontos de acesso controlados, é essencial ao funcionamento do catálogo, e por beneficiar aos usuários na busca por qualquer forma controlada de nome do autor ou de um título que permite recuperar os recursos bibliográficos. O modelo conceitual foi desenhado para:

 

§  Proporcionar uma referência, claramente definida e estruturada, para relacionar os dados que reúnem os criadores de registros de autoridade com as necessidades dos usuários;

§  Valorizar as possibilidades do intercâmbio internacional e de utilização dos dados de autoridade, tanto pelo setor bibliotecário como por outros setores.

 

Na prática atual, o registro de autoridade contém o ponto de acesso autorizado para a entidade, segundo o estabelecido pela agência de catalogação como a forma pré-determinada para a visualização no catálogo. O registro de autoridade também parece incluir informações que identificam tanto as regras, quanto a agência de catalogação responsável; e pelo estabelecimento dos pontos de acesso controlados e as fontes consultadas.

 

Declaração dos Princípios Internacionais de Catalogação

 

Mais de cinquenta anos depois dos Princípios de Paris, tornou-se evidente que os recursos colecionados pelas bibliotecas se diversificaram e o catálogo, no paradigma da ficha, ficou obsoleto. Em decorrência, a Divisão V de Controle Bibliográfico, Seção de Catalogação, da IFLA, decidiu atualizar o documento. A tarefa se desenvolveu por meio de reuniões entre os anos de 2003 a 2007. A PIC publicada em 2009, contemplou as entidades dos FRBR e FRAD, as tarefas do usuário preconizadas nos modelos como objetivo do catálogo, e a recomendação para uso da ISBD. Serve de guia no desenvolvimento dos códigos de catalogação. Inclui recomendações para registros bibliográficos e de autoridade. Pressupostos aplicáveis por qualquer comunidade que organize informação. O princípio essencial que orienta a construção dos catálogos é a conveniência do usuário. Neste sentido, define as funções do catálogo como:

 

§  ENCONTRAR os recursos bibliográficos em uma coleção (real ou virtual):

o    localizar um só recurso,

o    localizar um conjunto de recursos.

§  IDENTIFICAR um recurso bibliográfico, distinguindo entre dois ou mais entidades com características similares.

§  SELECIONAR um recurso bibliográfico que se ajuste às necessidades do usuário.

§  OBTER acesso ao item descrito; adquirir ou obter um registro de autoridade ou um registro bibliográfico.

§  NAVEGAR em um catálogo, significa navegar pela ordenação lógica da informação bibliográfica, e a apresentação de relacionamentos entre as obras, expressões, manifestações e exemplares.

 

Com relação à descrição bibliográfica, ela deve basear-se em norma de uso internacional. Poderá ter diferentes níveis de exaustividade, de acordo com os objetivos do catálogo. E em relação aos pontos de acesso, considerar dois procedimentos:

 

§  NÃO CONTROLADOS: Inclui o título, tal e como encontrado em uma manifestação, ou palavras chave acrescentadas ou encontradas em qualquer parte do registro.

§  CONTROLADOS: Proporcionam a uniformidade para localizar um conjunto de recursos. Estes registros normalizados ou entrada autorizada devem se organizar em registros de autoridade junto com suas formas variantes.

 

Os Princípios preconizam que a elaboração dos códigos de catalogação deve ter como objetivos: Conveniência do usuário; Uso comum; Representatividade; Exatidão; Precisão; Significação; Economia; Normalização; e Integração. Estipula como lema, que as regras do código devem ser defensáveis, e não arbitrárias.

 

Requisitos Funcionais para Dados de Autoridade de Assunto

 

Resultado do Grupo de Trabalho sobre FRSAD, da IFLA, criado em 2005, apresenta os aspectos dos dados de autoridade de assunto. Investiga a utilização direta e indireta destes dados pelos usuários, e enfoca outras questões relativas ao Grupo 3 das entidades dos FRBR. Assunto é um ponto de acesso importante, quando se busca informações sobre um determinado tema. Pesquisas demonstram que a integração da informação dos vocabulários controlados com um sistema de recuperação auxilia aos usuários nas buscas temáticas de forma mais efetiva. As entidades do Grupo 3 são utilizadas como assuntos das obras (os resultados do esforço artístico ou intelectual).

 

Elas representam um conjunto adicional de entidades que servem como assunto das obras, acrescidas das entidades do Grupo 1 e 2, que também podem ser assuntos das obras. As entidades do Grupo 3 incluem: conceito (uma ideia ou noção abstrata), objeto (uma coisa material), acontecimento (uma ação ou fato) e lugar (uma localização). A finalidade do grupo de trabalho se definiu nos seguintes termos:

 

§  Construir um modelo conceitual para as entidades do Grupo 3 do FRBR que relacione o conteúdo das obras.

§  Auxiliar na avaliação do potencial de utilização e de intercâmbio internacional dos dados de autoridade de assunto entre o setor bibliotecário e outros setores.

§  Proporcionar uma estrutura e definição para relacionar os dados que estão contidos nos registros de autoridade de assunto com as necessidades dos usuários.

 

Com relação às tarefas realizadas pelos usuários:

 

§  Encontrar um ou mais assuntos que correspondem aos critérios estabelecidos pelo usuário, utilizando atributos e relações;

§  Identificar um assunto baseado em seus atributos ou relações, confirmando o encontro do tema apropriado;

§  Selecionar um assunto adequado às necessidades dos usuários;

§  Explorar as relações entre os assuntos e/ou suas denominações.

 

Por fim, todos os documentos citados estão expressados no novo tabuleiro ou "videogame" da catalogação: RDA.

 

Recurso: descrição e acesso

 

Do processo de revisão do AACR2, surge uma ruptura quando o Joint Steering Committee for the Development of RDA (JSC), opta por desenvolver uma norma que não fosse simples continuidade do código. A RDA tomou forma com sua aproximação aos modelos FRBR e FRAD. Se organiza para o tratamento dos atributos e de suas relações, identificados nas diretrizes e instruções de descrição das obras, expressões, manifestações e itens, pessoas, famílias e entidades corporativas, e de conceitos, objetos, acontecimentos e lugares. Ressalte-se que os capítulos relativos aos conceitos, objetos e acontecimentos não estão desenvolvidos. Inclui, também, instruções sobre as relações entre obra, expressão, manifestação e item; as relações de pessoa, famílias e entidades corporativas com a obra, a expressão, a manifestação e o item com o que se associam.

 

As relações entre o assunto e a obra é outro capítulo não desenvolvido. A RDA é um padrão de conteúdo e não de apresentação ou de visualização de dados, assim, o esquema ISBD não se integra no texto da norma, mas está instruído no apêndice D da mesma. Também é uma novidade o fato de que, pela primeira vez, uma norma incorpora instruções sobre o registro para dados de autoridade. A RDA se estrutura em 37 capítulos organizados em 10 seções, 13 apêndices e um glossário. Se apresenta desenhada para o entorno digital, adaptável à estrutura de bases de dados — conforme os modelos FRBR e FRAD.

 

Atualmente, a maioria dos sistemas de gestão bibliotecária estão baseados no formato MARC, o que representa um inconveniente na hora de obter todos os benefícios da RDA; primeiro porque a norma está pensada para uma arquitetura de base de dados relacional e o formato bibliográfico tem uma sequência de campos e subcampos sem relação com a proposta arquitetônica da RDA.

 

A renovação do formato é uma questão urgente tanto quanto a atualização das regras catalográficas, porém a questão complexa diante das possibilidades das tecnologias web, da necessidade de preservar a integridade dos milhões de registros existente, e pela percepção da necessidade de convergência com outras comunidades e instituições de memória como arquivos e museus. Após dez anos de discussões, a RDA foi publicada em 2010, e oficialmente lançada em 2013.

 

Por fim, a regra do jogo está posta, compete ao catalogador jogar com acerto, para que a vitória pertença ao usuário.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.