CRÔNICAS E FICÇÃO


CHEGANDO EM CASA, VOU LER

No metrô, levava um livro sob o braço, dentro da sacola. Ela estava pensando no momento em que o lerá. Não quer começar agora, pois prometeu a si mesma que chegaria em casa, tomaria um banho, colocaria uma roupa confortável, comeria alguma coisa, sentaria no sofá - ou se largaria nele - e aí sim, começaria a ler. Abriria a capa e leria tudo até o início da história.

Fechou os olhos e antecipou o prazer de todas aquelas ações, o banho, o lugar confortável e o início da leitura. Mais do que isso: passar a mão na capa, sentir os pontos em relevo da imagem, decifrar, antes mesmo de ler, o significado da imagem da capa, das cores usadas pelo designer. Ficar pensando se o designer conversou com o autor ou se elaborou a capa a partir de sua própria leitura, de seu próprio entendimento. Quando terminar a leitura do livro, imaginar como seria ter que elaborar uma capa pra ele.

Quase esqueceu: depois de sentir a capa, a textura do papel interno, ou ao mesmo tempo, ela vai aproximar o livro do nariz e aspirar, deixar o cheiro do livro alcançar seu nariz. Era sempre assim, com qualquer livro. Uma amiga, tão bibliófila quanto ela, já a alertara para possíveis doenças que essa prática (prazeroso, maravilhosa, ela pensa) pode trazer, principalmente com livros usados. Esse conselho, no entanto, nunca é lembrado quando ela abre um livro novo ou, e isso acontece muitas vezes, quando ela retoma a leitura. Nestes casos, o cheiro muda. Ele, cheiro, abraça o cheiro dela e cria uma nova fragrância. Isso, não é cheiro, é fragrância.

Nem sempre o cheiro é bom. Algumas vezes o olor (romances e poesias gostam dessa palavra) da tinta, ao menos para ela, não é agradável. Até se acostumar com ele, ela deixa o livro um pouco mais longe do rosto. Mas, essa é uma situação que não acontece com frequência.

Com o livro já aberto, ela verá se a solução gráfica, a proposta gráfica é interessante, se é a ideal, a mais adequada. Ela se pergunta, em tendo que decidir, o que mudaria, o que manteria. A fonte tem um bom desenho, seu tamanho propicia uma boa e agradável leitura, o espaço entre as letras e entre as linhas, o tamanho das margens, a mancha de impressão nos levam ao desejo de ler?

Antes de começar o texto, ela frequentemente lê as orelhas (ela acha estranho algo escrito nas orelhas, pois estas devem ouvir e não dizer coisas), quer saber qual é a editora, de onde ela é; em que ano o livro foi impresso, mas também ela quer saber quando foi escrito; até a ficha catalográfica ela lê, pois lhe dá, entre outros, a ideia do assunto do livro.

Depois disso tudo, ela pensa, vai começar a saborear o texto, se entranhar na história, se envolver no enredo. Emotiva, dependendo da história irá chorar, molhar as páginas do livro e deixá-lo marcado com sua presença. A leitura não marca o livro, os rastros dela são externos. Mas, a leitura sempre marca a pessoa.

Ainda de olhos fechados, isolada no metrô cheio, ela antecipa todo esse prazer.

O livro que tem nas mãos, dentro da sacola da livraria, estava exposto e chamou sua atenção, ou melhor, o livro acenou pra ela, quase gritou quando ela ameaçou olhar pra outro. Ela o pegou, folheou, sopesou e, embora não conhecesse o autor, achou interessante; viu o preço e comprou. Até agora ela não consegue entender exatamente o motivo que a levou a comprar. Não importa, o livro está com ela e é dela. Depois de lido, apesar das estantes de sua casa estarem cheias - mais que cheias, repletas, abarrotadas - ela já sabe o lugar em que irá guardar o livro: visível, para que todos que o virem sintam o desejo de conhecer sua história, seu interior, não só a capa, não só a lombada. Mas, ficarão no desejo, pois ela não o emprestará.

A mão que segura a sacola começa a formigar. O livro tem vida, parece falar, quer ser lido. Talvez ela tome o banho, relaxante mas não muito demorado, e comece a leitura durante a jantar. Essa mistura de comida e leitura é bastante comum quando ela está sozinha. Sempre brinca dizendo que come a refeição e o livro, se farta de comida e de leitura. Por que hoje não? Decidido, hoje será assim. Chegará em casa, tomará um banho rápido, colocará uma roupa confortável, fará algo leve e rápido para comer e, junto, lerá.

Melhor deixar o banho pra depois, antes de ir pra cama. Ela vai chegar em casa, trocar de roupa, preparar algo rápido e começar a leitura enquanto prepara a comida.

Alguém do lado se mexeu e ela abriu os olhos. Muita, muita gente no metrô. A maioria com o celular na mão. Parceiros de interesse na leitura, amantes do livro, membros da tribo de leitores? Não viu ninguém. Triste. Outro dia viu uma pessoa lendo e fez de tudo para saber qual era o livro: se contorceu, espiou por sobre o ombro dessa pessoa - e de outras que estavam no caminho -, fingiu que estava amarrando o sapato (para olhar de baixo para cima) e se decepcionou, pois era um livro de auto ajuda, daqueles que ela detesta.

Por que ninguém lê no metrô? Será que é por falta de exemplo? Ver alguém lendo não pode despertar o desejo em outros e mostrar a eles que a leitura está na moda, que vivemos tempos também de leitura? Os leitores, a tribo, não deveriam mostrar o interesse pela leitura e trazer mais gente para o grupo? Essas questões apareceram e a encheram de dúvidas. Qual a responsabilidade dela em propagar o gosto, o desejo pela leitura?

Decisão final: tirou o livro da sacola e começou a leitura, lá mesmo, sentada no metrô, servindo de exemplo para muita gente - que logo, logo desapareceriam, ficariam esquecidas assim que a primeira frase da história fosse saboreada.

Autor: Oswaldo Francisco de Almeida Junior

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OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.