OBRAS RARAS


MISSÕES JESUÍTICAS NO PARAGUAI - I

(Entrevista com Fernanda Verísssimo)

Fernanda Veríssimo (sim, neta e filha), gaúcha nascida no Rio de Janeiro, apesar de nova, já tem currículo e experiência profissional que a qualificam para um belo futuro. Jornalista, musicista, tradutora, ex-diretora do Centro de Estudos Brasileiros de Moçambique (os Centros são instituições ligadas a embaixadas do Brasil em alguns países), comentarista da Globosat para o programa Revista Europa (produzido na Europa e exibido em televisão a cabo brasileira e portuguesa), estagiária da British Library nos departamentos de Catalogação e Antigüidades, e quase PhD em História Moderna e Contemporânea pela Universidade de Sorbonne, Paris IV, a Veríssimo passa o verão americano na John Carter Brown Library como bolsista pesquisando assunto pouquíssimo explorado, se não inédito: aspectos técnicos, entre outros, dos livros impressos nas missões jesuíticas do Paraguai - ou o que sobrou deles. Seu mestrado em Bibliografia, Estudos de Texto e Publicação pelo Departamento de Inglês da Universidade de Leeds na Inglaterra a direcionou para a área de Bibliografia e eu digo, brincando, que Fernanda tem mais de bibliotecária do que imagina. Na realidade, esse seu lado já havia se manifestado em 1982 quando, ainda em Porto Alegre, andou pelo Arquivo Histórico da cidade.
O melhor é deixá-los com ela.

1. Qual o seu objeto de estudo e como você o está desenvolvendo?
O meu objeto de estudo são os livros impressos nas missões jesuíticas do Paraguai no século dezoito. A idéia é tentar entender um pouco mais o funcionamento deste atelier de impressão (ou ateliers, porque não se sabe ao certo se havia uma só prensa e uma só oficina) e também o porquê de haver impressão nas Reduções. Os jesuítas sempre gostaram e usaram o livro impresso como meio de evangelização e educação, claro, e tanto a Companhia de Jesus quanto as outras ordens religiosas foram responsáveis por um enorme trabalho de reconhecimento e "codificação" de línguas indígenas até então não-escritas, mas suas oficinas eram quase sempre ligadas aos colégios ou, no caso da América, situadas em cidades coloniais, com uma população, em grande parte, de origem européia. No caso das missões, a população era totalmente indígena e havia poucos missionários em cada Redução. Se levarmos em conta as dificuldades tecnológicas para estabelecer uma oficina de impressão - que foi, aliás, a primeira totalmente criada na América do Sul, pois a prensa e os tipos foram produzidos nas missões e apenas o papel era importado - e o know-how necessário para a produção de livros, achei interessante tentar descobrir porque os padres achavam que este esforço todo valia a pena. Mas, no momento, eu estou tentando me concentrar numa bibliografia mais técnica: o grande privilégio de trabalhar na John Carter Brown Library é ter a mão, literalmente, quatro dos seis títulos que ainda existem da produção missioneira (dos dois restantes, um eu já consultei em São Paulo, na biblioteca de José Mindlin). Assim, é possível comparar os livros. Além de ser emocionante, claro.

2. Quais são os livros publicados nas missões?
Conhecemos o Martirologio Romano e o Flos Sanctorum, ambos provavelmente publicados em torno de 1700. Não se sabe se essas biografias de santos foram publicadas em espanhol ou em guarani, mas o primeiro pode ter sido impresso em ambas as línguas, de acordo com as fontes de referência. Não se conhece o paradeiro desses livros.
De la Diferencia entre lo Temporal y lo Eterno, de Juan Eusebio Nieremberg (Madri, 1640, a primeira edição). Este foi um best-seller espanhol da época. Traduzido em 1705 para o guarani pelo padre José Serrano, um dos jesuítas responsáveis pelo estabelecimento da tipografia no Paraguai, essa edição sulamericana, com mais de 400 páginas, xilogravuras e 43 ilustrações em metal, é primorosa e muito bem feita.
Instruccion Practica para Ordenar Santamente la Vida (1713), um livrinho mal impresso em espanhol, sem licenças, talvez publicado sem o conhecimento do autor, o padre Antonio Garriga, jesuíta que trabalhou em Lima, Peru.
Vocabulario de la Lingua Guarani (1722), de Antonio Ruiz de Montoya, revisado e aumentado pelo padre Paulo Restivo, o mesmo que mais tarde escreveria junto com o autor guarani Nicolas Yapuguay.
Arte de la Lengua Guarani (1724) pelo padre Paulo Restivo e no mesmo ano Explicacion de el Catechismo en Lengua Guarani, por Nicolas Yapuguay e Restivo.
Finalmente, em 1727, Sermones y Exemplos en Lengua Guarani, por Yapuguay e Restivo.

3. Como surgiu a idéia de trabalhar com a impressão de livros nas missões jesuítas do Paraguai?
Eu não sou historiadora, mas fiz um mestrado na área de história do livro há alguns anos na Universidade de Leeds, na Inglaterra. Foi um curso maravilhoso, que misturava a bibliografia mais técnica e analítica a temas mais teóricos e históricos, ou a uma «sociologia do texto», como diria McKenzie. Trabalhamos desde questões super específicas da técnica de impressão com prensa manual - chegamos a compor e imprimir um livreto numa prensa do início do século XIX - até questões mais "clássicas", que sempre deram muito pano pra manga, como a edição do Rei Lear em formato quarto (em comparação com a edição em folio amplamente conhecida) ou as edições do Ulysses de Joyce. Ao voltar ao Brasil, depois deste curso, eu tive a oportunidade de visitar a biblioteca de José Mindlin, em São Paulo, e descobri - além da gentileza inigualável do Dr. José e da D. Guita - o livro Explicacion del Catechismo, impresso nas missões e escrito por um índio, Nicolas Yapuguay. Eu confesso que não tinha a menor idéia de impressos produzidos nas missões, e muito menos que tinham sido dos primeiros na América do Sul... Logo pensei que talvez fosse um bom ponto de partida para continuar um trabalho na área da «história do livro», com um assunto mais ligado à América colonial, que também sempre foi um assunto que me interessou. Acabei defendendo um mestrado com esse tema na Sorbonne, sob orientação do Prof. Luiz Felipe de Alencastro, e agora estou tocando o doutorado - com estes três meses de pesquisa na JCB.

4. Quem foi Nicolas Yapuguay?
Yapuguay é autor de pelo menos dois livros impressos nas missões (Sermones y Exemplos en Lengua Guarani e Explicacion del Catechismo), ambos obras religiosas e escritas em colaboração com o jesuíta Paulo Restivo, como disse antes. Só o que se sabe dele é o que diz Restivo na introdução de Explicacion del Catechismo: «Muy conocida y superior a lo que puede saber en un Indio es la capacidad de eses Nicolas Yapuguai, cacique y musico de Santa Maria y con razon muy alabada su composicion por la propiedad y claridad y elegancia con que felizmente se explica, aun en cosas tocantes a Dios, que en otros indios no es tan facil hallarlo (...)».

(Continua)


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.