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VALE MAIS UMA INFORMAÇÃO DO QUE UM PRATO DE FEIJÃO: BALELAS BIBLIOTECÁRIAS II

Durante o Encontro de Bibliotecários de Bibliotecas Públicas do Estado de São Paulo, um dos escritores convidados para relatar suas experiências em relação as bibliotecas, comentando antiga palestra também proferida para bibliotecários, lembrou de uma pergunta formulada pela plateia e que se tornou, desde aquela época, motivo de constante reflexão:

- O que é mais importante: um livro ou um prato de comida?

Outro escritor, também convidado a ocupar um lugar na mesa de debates naquele Encontro, interveio dizendo que possuía a resposta adequada:

- A solução mais lógica é o interessado tomar uma sopa com macarrão em forma de letrinhas.

Desnecessário dizer que a plateia riu – alguns gargalharam – mas, após, a discussão acabou e o questionamento continuou no mesmo estado em que foi apresentado, sem o necessário debate que poderia não solucionar, mas, pelo menos, contribuir para que as reflexões dos bibliotecários presentes pudessem contar com ideias, análises e argumentos para seu esclarecimento. Afinal, vale mais uma informação do que um prato de feijão?

A primeira reação da maioria dos bibliotecários brasileiros é defender, ardorosa e calorosamente, a importância da informação. Sem ela, as pessoas não podem desenvolver um conhecimento adequado e suficiente para fazer frente aos obstáculos que a sociedade impõe, no intuito de manter a situação de privilégio assegurada a uma reduzida parcela da população. Ainda no dizer dessa maioria, o prato de feijão é paliativo, ao invés da informação que, por seu lado, é perene e servirá como base, como suporte para a aquisição do alimento necessário à sobrevivência. Enfim, “não dar o peixe, mas ensinar a pescar”.

Analisando o ditado acima, poderíamos transcrevê-lo e resumi-lo, utilizando outras palavras: “reproduzir o sistema em vigor”. De fato, ensinar a pescar representa a forma adequada de suprir a necessidade básica de alimentação. No entanto, outras necessidades existem e requerem que, a partir daquela, também sejam satisfeitas. A moradia, o vestuário, a saúde, a educação, o lazer etc., podem ser considerados como seus maiores exemplos. Como suprir essas necessidades a partir da pescaria?

Provavelmente pescando além do que a sobrevivência exige e utilizando o excesso para comercializar. Quem sabe contratando outros pescadores que, alimentados (desculpe) com varas e redes, entreguem ao fim do dia todo o produto da pescaria, recebendo em troca uma quantidade que nem sempre, ou nunca, corresponde ao mínimo necessário para refazer o esforço gasto. Ensinar a pescar é a introdução ao sistema de mercado que exige a absorção de preceitos, valores e normas específicos. “Não dê esmolas, ensine a ...” o que? Trabalhar? Trabalhar para depois de 30 dias, receber em troca um irrisório salário, remuneração ridícula que não cobre as condições mínimas que uma vida digna exige? Ou trabalhar para não pôr em risco a integridade física daqueles que sugam a força de trabalho e, submissamente, aceitar como naturais as relações que um sistema determina, mesmo que em detrimento de sua cidadania?

A afirmação apresentada inicialmente – vale mais uma informação que um prato de feijão – deve, ou convém, ser alterada, no mínimo, para uma indagação. Ficaria assim delineada: “Vale mais uma informação do que um prato de feijão?”.

Parece-nos que, apesar da alteração na maneira de expor o problema, a questão está incorretamente formulada, já que pretende medir a importância de dois itens (informação e alimento) que não permitem comparação. Cada um deles representa, para a população, uma necessidade em circunstâncias, níveis e momentos determinados. Graus de importância apenas devem ser delineados em condições e situações específicas. O suprimento deles deve acontecer de forma concomitante, deixando de lado a preocupação, sem qualquer finalidade, de identificar qual o prioritário ou qual trará maiores benefícios.

É inegável, no entanto, que dentro da divisão social do trabalho, das relações e lutas de classes e do sistema de mercado dentro do qual estamos inseridos, e em que a maioria aluga sua mão de obra aos que detêm os meios de produção, o alimento torna-se primordial para manter o corpo apto a continuar sendo empregado como força produtiva. Por outro lado, a informação que as bibliotecas, atualmente, teimam em disseminar, significa muito pouco para esse segmento – o maior, evidentemente – da população. As informações devem estar voltadas para que esse extrato possa entender o que há por trás dessa situação. O que realmente ocorre é a distribuição farta e generosa – para quem procura – de informações que apenas ajudam a reproduzir o sistema, além de capacitar a classe dominante de mais uma instituição utilizada para, ideologicamente, manter sua situação de poder. Nessas condições é impossível não concordar com aqueles que dizem que o prato de feijão tem um significado muito maior do que a informação, o que contradiz, como vimos, o senso comum dos bibliotecários.

Qualquer transformação – e essa é uma palavra utilizada abundante e aleatoriamente pelos bibliotecários – só poderá ocorrer quando as informações disseminadas pelos profissionais de nossa área tenham como finalidade a satisfação das necessidades das classes oprimidas levando a que estas reconheçam a biblioteca como uma instituição socialmente útil.

(Publicado originalmente em: APB Boletim, São Paulo, v.6, n.2, p.6-7, jul./set. 1990.)


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OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.