ARTIGOS E TEXTOS


BIBLIOTECA PÚBLICA: ÚTIL SOCIALMENTE? OU BIBLIOTECA PÚBLICA: MISSÃO OU “MISE EN SCÈNE”?

1 INTRODUÇÃO

A biblioteca pública é socialmente útil? Sem nenhuma dúvida, diriam muitos. Afinal, nós, bibliotecários, trabalhamos com a informação. Alguém pode contestar ser a informação a matéria prima e o produto das atividades de uma biblioteca? Pode também ser contestado que informação é poder, que a informação possibilita uma reflexão, uma revisão de valores e posicionamentos, uma nova postura em relação à sociedade? Em não havendo contestações, podemos afirmar que, inegavelmente, a biblioteca pública é útil socialmente. Por que, então, existe um número tão pequeno de usuários nas bibliotecas? É que a população ainda não percebeu a importância da informação e, por conseguinte, da biblioteca.

Posições como a apresentada acima, calcadas num arrazoado sem fundamento, grassam abundantemente na biblioteconomia.

É correto e verdadeiro – e nós a defendemos integralmente – que a informação é produto de “primeira necessidade”. Tal como água, luz, esgoto, alimentação, vestuário etc., a informação é necessária para que a pessoa possa exercer seus direitos de “cidadão”. A cidadania não existe sem informação.

Também é correto e verdadeiro que a informação é a matéria prima, é o próprio produto, enfim, é o objeto de trabalho das bibliotecas públicas. Entretanto, não é correta a conclusão de que, apenas pelos motivos expostos, a biblioteca pública é útil socialmente. Se a demanda por informações é pequena, quase nula, podemos inferir que algo está em dissonância com o resto do conjunto, não possibilitando um “happy end” para nossa tese.

 

2 A MISSÃO DA BIBLIOTECA PÚBLICA

Antônio Miranda, em artigo publicado em 1978, apresentou “Em linhas gerais, os objetivos que inspiraram a missão das bibliotecas públicas...:

“1. Promover o idioma nacional. (...)

“2. Fornecer publicações oficiais. (...) (que pretenderiam dar ao indivíduo) o conhecimento de seus deveres e direitos, das oportunidades que existem para ele, dos meios pelos quais ele pode desenvolver-se para progresso próprio, da família e do país. (...)

“3. Fornecer livros e outros materiais para o estudante. (...)

“4. Apoiar campanhas de alfabetização e fornecer livros adequados aos néo-alfabetizados. (...)

“5. Ser depositária do acervo da inteligência e da história local. (...)

“6. Fornecer serviços de informação técnica e comercial.” (MIRANDA, 1978, p.71-3)

Alguns parágrafos abaixo o autor aconselha: “Sobretudo a biblioteca deve afixar, em local bem visível, informações de utilidade para os municípios: notícias sobre cursos e conferências; cartazes anunciando peças de teatro, shows, competições esportivas, festas religiosas ou típicas, etc. (...) Na batalha para atrair leitores, a imaginação deve voar sem limites.” (1978, p.73).

Perguntamos: essas informações de utilidade para os municípios atingiriam toda a “multidão” de usuários que afluem à biblioteca pública?

E arremata: “A biblioteca deve oferecer toda espécie de serviços sem, porém, desvirtuar sua missão fundamental de promover o gosto da boa leitura.” (MIRANDA, 1978, p.74).

O artigo de Antônio Miranda tornou-se um clássico e, obviamente, influenciou e influencia os trabalhos de muitas bibliotecas públicas do Brasil. Se essa missão fosse seguida totalmente, atrairíamos mais usuários para nossas bibliotecas? Certamente que não. Esses “serviços” já são desenvolvidos e oferecidos pelas bibliotecas públicas, sem que a demanda tenha se alterado. O que acontece, então? O texto tenta explicar: “Esta impressão infeliz e distorcida do que seja uma biblioteca (...) é criada sobretudo pelos comentários daqueles que nunca ultrapassaram os umbrais de sua biblioteca pública municipal, por falta de incentivo para fazê-lo ou porque, havendo-a visitado, não encontrou nela atmosfera de entusiasmo e hospitalidade, de boa vontade e de calor humano capazes de vencer todas as barreiras e de dar ao leitor a sensação de que ele é parte da instituição, que ele é desejado ali e que, se não é melhor servido, é porque os recursos não permitem.” (MIRANDA, 1978, p.74).

Atmosfera de entusiasmo, hospitalidade, boa vontade e calor humano colaboram para que o leitor retorne à biblioteca, mas, provavelmente, seu intuito será o de “bater papo” com um bibliotecário tão simpático e aproveitar para tomar um cafezinho (ou será chá?) que ninguém é de ferro.

Agora, e aqueles que não “ultrapassaram os umbrais” da biblioteca, como vão saber que há na cidade um recanto tão paradisíaco?

A missão fundamental, de acordo com o texto, é promover o gosto de boa leitura. Exclui-se, absolutamente sem remorsos, o analfabeto. Não tem ele direito a um ambiente, como direi, assaz agradável?

Então, podemos concluir que a missão da biblioteca não está voltada para todos, ao contrário, ela se direciona a uma ínfima parcela: àqueles que “saboreiam” uma boa leitura. Já que estamos falando sobre isso: afinal, o que é e quem qualifica uma leitura como “boa”?

Essa panaceia (desculpe-nos usar esse termo quando falamos de um local tão convidativo) quase nos faz esquecer o que consideramos fundamental na biblioteca: a informação.

 

3 DA INFORMAÇÃO À INFORMAÇÃO

Alterar algo que nunca mudou deve ser, hoje, uma palavra de ordem do bibliotecário que atua em biblioteca pública. A informação nunca deixou de ser o fundamental, mas é necessário que isso se torne patente e cristalino.

Atingir todos os segmentos da sociedade é tarefa, mais que isso, dever da biblioteca. Ao contrário da leitura, a informação atinge a população como um todo. A biblioteca pública, trabalhando com a informação, estará, então, presente na comunidade, independentemente de ser esta formada por leitores ou analfabetos.

Um problema: muitas bibliotecas públicas, hoje, têm como base de seus trabalhos, a informação. No entanto, a demanda continua pequena e a imagem da biblioteca não se alterou. Não é contraditório em relação ao que foi exposto anteriormente? A informação prestada deve estar adequada às necessidades da comunidade. Não basta, pura e simplesmente, transferir qualquer informação, é preciso que ela reflita os interesses daqueles a quem está sendo destinada.

O bibliotecário não pode esquecer que, quanto à informação, não há neutralidade possível. Ela é intrinsecamente parcial, o que torna aquele que com ela trabalha, suscetível de posturas errôneas, contraditórias e inadequadas, principalmente quando da tentativa de ser neutro.

 

4 A BIBLIOTECA COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO

A biblioteca tende a veicular informações imbuídas de conceitos contrários às propostas sócio-político-econômicas e culturais da maioria da população. Refletindo posturas e interesses da classe detentora do poder, a biblioteca transforma-se num instrumento de dominação.

As informações que normalmente são veiculadas pela biblioteca, apenas são decodificadas e absorvidas pelos que possuem um mínimo de “iniciação”, um mínimo de “conhecimentos”, um mínimo, por que não dizer, de “informações”. A complexidade das informações está proporcionalmente relacionada, para seu entendimento, ao acervo de conhecimentos de cada usuário. A biblioteca, ao se preocupar com o leitor “culto’, amplia o fosso da “distribuição de informações”: nada para quem não tem e muito para quem já tem.

A biblioteca é, sim, um instrumento de dominação, um canal por onde perpassa, os interesses de sujeição dos dominantes, um espaço onde se desencadeia o processo de reprodução da situação vigente; uma arena onde a luta de classes já tem vencedor pré-estabelecido. E nós, bibliotecários, somos aquilo que dizemos que não somos, aquilo que não queremos ser.

Como é possível pretender atrair usuários, oferecendo um produto que lhes é totalmente antagônico? Biblioteca e usuário, em sua maior parte, são, assim, opostos, contrários.

A biblioteca, como hoje se apresenta, serve como obstáculo à tentativa da população de obter sua cidadania. Os bibliotecários continuam apostando que o livro, por si só, arrancará o povo da sua total ignorância. Pouco importa o conteúdo, as ideias, as informações. Basta o livro, exclusivamente enquanto objeto. Tudo estará perfeito se não faltarem a página de rosto, a data, o colofón...

Como atingir o usuário se a nossa proposta é, em última instância, um apelo à sua subserviência; uma oferta, autoritária, de informações que trazem em seu bojo uma exigência de acatamento de posturas opostas aos seus interesses

 

5 BIBLIOTECA: AIE DE ESTADO

A biblioteca, como vimos, torna-se um instrumento de dominação. Obviamente, essa dominação não é repressiva no sentido físico do termo; ela se processa de forma velada, encoberta, buscando escamotear seus verdadeiros interesses através de ideias transmitidas como “verdades”; ela se processa através da ideologia.

Para Althusser, são designados “por Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas” (1985, p.68). Ao contrário do Aparelho Repressivo do Estado, os AIEs “funcionam através da ideologia” (1985, p.69).

Pelo exposto, podemos afirmar, sem perigo de erros, que a atual biblioteca é, inegavelmente, um aparelho ideológico do estado, orbitando entre os AIEs cultural, escolar e de informação.

A população, por não ver traduzido seus anseios, necessidades, ideias, propostas etc., na biblioteca, não a visualiza como importante e/ou útil socialmente. Por que procurar soluções em uma instituição que fornecerá repostas fundamentadas em conceitos contrários aos nossos?

Esse panorama será alterado apenas quando a biblioteca aglutinar, produzir, veicular e disseminar informações que estejam coadunadas com os legítimos interesses da comunidade a que serve. A biblioteca se transformará não mais num instrumento/aparelho de dominação, mas num canal efetivo de resistência cultural.

 

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal. 1985.

MIRANDA, Antônio. A missão da biblioteca pública no Brasil. Revista de Biblioteconomia de Brasília, Brasília, v.6, n.1, p.69-75, jan./jun. 1978.

(Palestra proferida em 1987)

(Publicado originalmente em: ALMEIDA JUNIOR, Oswaldo Francisco de. Sociedade e Biblioteconomia. São Paulo: Polis, 1997)

Autor: Oswaldo Francisco de Almeida Junior

   695 Leituras


author image
OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.