PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DO BIBLIOTECÁRIO OU POR UMA BIBLIOTECONOMIA GUERRILHEIRA
Costuma-se dizer que o bibliotecário é um especialista em generalidades. Diz-se também que a matéria prima que utilizamos para exercer nossas atividades abrange, além das clássicas, “malfadadas” e “mal-faladas” fichinhas, o universo do conhecimento humano dividido em 10 grandes classes ou segmentos. É importante frisar que entre essas classes não existem confrontos, choques, lutas. Ou melhor, não pode haver. Os bibliotecários não querem e não acreditam que exista luta de classes, desculpe, lutas entre as 10 grandes classes, porque... bem, porque isso já é marxismo demais para quem se acredita neutro.
Vamos pensar juntos no que aconteceria se fosse real esta pequena suposição:
Se uma “onzima” ou décima primeira grande classe fosse cogitada – o que redundaria, dentro do pensamento profissional existente, na destruição do sistema decimal –, a inexorável censura biblioteconômica esmagaria ou, de uma forma mais brasileira, censuraria e exilaria tal pretensão. Tudo em nome do mais alto conceito da ordem e do progresso. Quem sabe, numa situação dessa, não assistiríamos (ou participaríamos) de uma Marcha da Família Bibliotecária com Dewey pelo Sistema Decimal. Do meio da grande horda de bibliotecários que encampariam e participariam da Marcha, avistaríamos cartazes: “Abaixo os que querem destruir o Sistema”; “Décima primeira, go home”; “Fora com os anti-decimais”. Na entrevista coletiva à imprensa, a coordenadora da Marcha diria: “Há muito mais coisas numa ficha catalográfica do que sonha nossa vã filosofia”. Inebriada e exultante (já pensou, bibliotecário dando entrevista coletiva...), arremataria: “Classificação não existe só nos vestibulares; taxionomia não é o estudo de motoristas de táxi e não esqueçam de pensar na razão maior de nossa economia ser toda indexada”.
Dessa forma, o golpe (seria esse o termo correto ou estou invertendo as coisas?) seria desfeito e continuaríamos vivendo sob a égide do sistema biblio-cristão ocidental, dentro da aliança entre os adeptos da CDD e da CDU.
Se vocês estão imaginando que eu estou tentando dizer que o bibliotecário é retrógrado, conservador e reacionário, acertaram. Somos obrigados a aceitar que o profissional bibliotecário é retrógrado, conservador e reacionário. Muitos vão discordar desta minha posição. No entanto, acho inegável a identidade entre o pensamento bibliotecário e a ideologia burguesa (exagerei?).
O nosso tema é a participação política do bibliotecário. Pode não ter ficado claro, mas estou tentando falar sobre isso desde o começo. Usei algumas figuras para contrastar com a definição mais usual que o bibliotecário dá de si mesmo: neutro, imparcial, apolítico. Se estou querendo contrastar é porque não acho que o bibliotecário seja neutro, imparcial e apolítico.
A maioria das pessoas acredita que a política está relacionada apenas com políticos, partidos, governo, demagogias e eleições. Os políticos são todos corruptos, mentirosos, demagogos e enganosos; os partidos não possuem um programa e só “funcionam” nas épocas de eleições; estas últimas, as eleições, continuam sendo manipuladas e os governos estão apaticamente sentados num pacote de mordomias, ditando ordens que alteram pouco a estrutura vigente, sempre com base nos interesses de uma minoria que detêm o poder. Partindo desse ponto de vista, na medida em que não sou político de carreira; não faço parte de nenhum partido político; não sou governo e que sempre voto em branco ou em trânsito, obviamente sou apolítico e neutro. Tal arrazoado parece lógico, mas a base está correta?
Para João Ubaldo Ribeiro, política tem a ver com o processo de formulação e tomada de decisões que afetem, de alguma maneira, a coletividade.
Nós todos sabemos que antes da tomada de uma decisão, as influências e os interesses contam muito. O povo, infelizmente, não possui nenhuma força política que possa levá-lo a influenciar, a determinar que os seus interesses prevaleçam quando das decisões governamentais. Óbvio que essa falta de força política, essa não-força política do povo, refere-se a canais concretos, institucionalizados, que representam formalmente seus interesses e reconhecidos como tais pela população. Inúmeros exemplos poderiam ser aqui apresentados, mas, acredito, são já por demais conhecidos.
O povo desconhece seus direitos. Há algum tempo constatou-se, através de uma pesquisa realizada por um jornal de São Paulo, que grande parte da população brasileira não sabia o que era constituição. Como é possível pensar e realizar uma constituinte sem fornecer a essa mesma população as informações básicas e primárias sobre o assunto? Num gesto isolado, foi proposta e, dizem, concretizada a elaboração de uma “cartilha” que apresentaria, de maneira simples, dados sobre a Constituição e a Constituinte. Até hoje não vi essa cartilha e não conheço absolutamente nenhuma pessoa que a tenha recebido. Qual seria, se foi, o resultado dessa cartilha, quando sabemos que mais de 30% da população é analfabeta? Isso representaria mais de 40 milhões de pessoas. Além disso, os semianalfabetos, ou semialfabetizados, como queiram – aqueles que apenas sabem assinar o nome (o deles, claro), aqueles que concluíram ou não o MOBRAL, devem representar, por sua vez, um percentual igual ou mais alto. Estima-se, por outro lado, em 30 milhões os menores carentes. Vejam: estamos falando em milhões de brasileiros, em milhões de pessoas que são alijadas de sua condição de cidadão por não terem nenhuma consciência dos seus direitos. Toda essa população estará fora das decisões da Constituinte e, obviamente, seus interesses apenas serão lembrados através dos poucos que representam, verdadeiramente, o povo.
E o bibliotecário, onde entra nisso tudo?
Muito provavelmente a maioria dos profissionais bibliotecários deve achar que não tem responsabilidade, que não pode e nem deve interferir nesse processe. Esse problema é entre o povo e os políticos. Quando muito, nós bibliotecários, teremos a “dita cartilha” em nosso acervo e, quando solicitada, com a presteza e simpatia que nos são peculiares, a colocaremos nas mãos do usuário. Mais não podemos fazer. Afinal, a função maior do bibliotecário é promover, incentivar a leitura. O analfabeto? Esse já é um problema da Escola, um problema educacional que não nos cabe resolver. Colegas – pra não dizer “companheiros” que assusta um pouco – o livro não é um artigo popular e reconhecido como necessário. É preciso que a gente tenha consciência disso. Apesar de sabermos da importância do livro, de o colocarmos como artigo de primeira necessidade na formação das pessoas, no auxílio à criação do senso crítico e da consciência das pessoas (essa marchinha é velha, mas é boa, não?), ele não é reconhecido dessa forma.
A população não nos reconhece como úteis socialmente. E sabem por quê? Porque insistimos em não reconhecer a nossa verdadeira função social que não é apenas incentivar a leitura, mas trabalhar com a informação, levá-la àqueles que dela necessitam. Através dela, permitir que a população conheça seus direitos, saiba como reivindicá-los, possua uma consciência social e política que possa transformar toda essa estrutura social. A população não nos reconhece como úteis socialmente, porque absolutamente nada estamos fazendo por ela. Pelo contrário, dentro do modo como hoje atuamos, estamos servindo aos interesses da minoria que detêm o poder, daqueles que oprimem o povo, daqueles que não querem que o povo tenha informações, conheça seus direitos. Trabalhando apenas com os alfabetizados, nós estamos colaborando para que aqueles que foram ungidos com a possibilidade de estudar aprofundem ainda mais sua diferença em relação àqueles que a sociedade não permitiu que tivessem acesso a Escola.
A população vê a biblioteca como o templo dos eleitos: aqueles a quem foi permitido entender o sentido daquele agrupamento de símbolos impressos num livro. Ela não está entre os eleitos: logo, aquele não é um lugar seu. Deve ser, tem que ser, mas, na realidade, não o é. E a culpa é de toda uma estrutura que o bibliotecário ajuda a manter.
O bibliotecário, como já disse, não é apolítico, neutro, imparcial. Como pode o bibliotecário se considerar imparcial se os materiais do seu acervo são parciais? Como pode o bibliotecário se considerar imparcial se a própria localização da biblioteca onde trabalha serviu a interesses políticos e que não exprimem a real necessidade da comunidade? Como pode o bibliotecário se considerar imparcial se aqueles que mais necessitam da biblioteca estão impossibilitados de fazer uso dela?
Nós precisamos atingir a população carente, a população carente de informações. Não será com essa postura apática, passiva e reacionária da biblioteca de hoje que o conseguiremos. Não basta espalharmos bibliotecas em cada quarteirão, em cada esquina. É preciso que o bibliotecário que atuar nessas bibliotecas seja um outro bibliotecário; é preciso que ele seja consciente da sua real função social; é preciso que ele saiba que o seu trabalho pode e deve alterar pensamentos e comportamentos; é preciso que ele vá até a população, que ele procure o povo, que ele trabalhe com a comunidade.
Nós precisamos de uma Biblioteconomia subversiva. Nós precisamos de uma Biblioteconomia guerrilheira, que subverta a ordem das atuais prioridades; que procure, busque, constantemente, os interesses populares, que esteja voltada para os oprimidos.
Os termos empregados, como subversivo, guerrilheiro, assim como tantas outras palavras, precisam ser desmistificados. A conotação ou as conotações que estão vinculadas a essas palavras precisam desaparecer, pois foram elas empregadas como suporte do autoritarismo, da ditadura militar que sufocou nossa sociedade, que nos sufocou.
Um parêntese: não somos ingênuos a ponto de acreditar que o autoritarismo terminou, ou melhor, foi exterminado. Jânio Quadros está aí, querendo reeditar os áureos tempos (áureos tempos para eles). Existe uma outra ditadura, um outro autoritarismo, menos claro, escondido, que é o autoritarismo social, aquele que não permite uma distribuição de renda mais democrática; aquele que insiste em dizer que o salário é inflacionário; aquele que estuda o desemprego apenas estatisticamente; aquele que quer resolver o problema da segurança apenas colocando mais viaturas, mais policiais, decretando a pena de morte, esquecendo-se da causa real dessa problemática. Esse autoritarismo ainda existe e está, hoje, mais forte do que nunca.
Retomando: é preciso desmistificar as palavras. Por exemplo: comunista não come criancinha no café da manhã (é possível que coma no almoço, mas no café da manhã, não come não). Os arrepios de medo que a simples menção da palavra comunista causava em todos foi imposto por aqueles que nos dominaram por mais de 20 anos. A ideologia dominante quer, e normalmente consegue, passar como real concepções que só a ela interessam. “O trabalho enobrece”, por exemplo. Quem ainda aceita essa frase? Ela está completamente errada; o trabalho não enobrece, o trabalho cansa. Quem é que nos transmite, ou melhor, a quem interessa a veiculação de que o trabalho enobrece? Àqueles que são os donos dos meios de produção, os patrões, em suma, os que não trabalham. Não temos direito ao lazer? Não temos direito a trabalhar 40 horas ao invés de 48 horas semanais? Um estudo da Emplasa, veiculado, resumidamente, pela televisão, mostra que o trabalhador paulistano tem, em média, uma hora e meia de lazer por dia. Esse trabalhador, nessa hora e meia vai ler? Ou vai ficar em frente ao aparelho de televisão, assistindo programas que transmitem informações já mastigadas, que não demandam análise e raciocínio?
E os bibliotecários querem que esses indivíduos procurem a biblioteca. Não vamos nos esquecer, apenas para enfatizar, que o horário em que o trabalhador está em casa é o mesmo em que a maioria das bibliotecas estão fechadas.
A biblioteconomia está precisando de uma “teologia da libertação”. Talvez, com ela, os bibliotecários passem a se interessar mais pelo povo, pelos carentes de informação, não de uma forma assistencialista, mas como um dever, uma obrigação social da profissão.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Da arte de não participar. Palavra-Chave, São Paulo, n.5, p.8-9, maio 1985.
RIBEIRO, João Ubaldo. Política. 2.ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1981.
(Palestra proferida na X Jornada Sul-Riograndense de Biblioteconomia e Documentação, em 01 de julho de 1988)
(Publicado em ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Participação política do bibliotecário ou Por uma biblioteconomia guerrilheira. In: ________. Sociedade e Biblioteconomia. São Paulo: Polis : APB, 1997. p. 89-93.)