SILÊNCIO: VAMOS FALAR DE BIBLIOTECA
Biblioteca: silêncio. Quem surgiu primeiro, a biblioteca ou o silêncio?
Pode não parecer, mas o silêncio nem sempre é mudo. Em muitas situações, em muitos momentos, o silêncio fala, grita, é eloquente. A biblioteca, ou melhor, o silêncio imposto na biblioteca, é um exemplo.
Por que a cultura é passada como algo doloroso, difícil, que requer sacrifícios, concentração, abnegação? Por que é imprescindível um silêncio sepulcral, anormal, dissociado do cotidiano para se exercitar a leitura? Por que nós, bibliotecários, podamos e reprimimos a conversa, o debate, a troca de conhecimentos, ideias e entendimentos em nome da preservação de um ambiente adequado para a concentração e absorção individual de cultura? Será que estas questões não merecem nossa atenção?
Este artigo deve ser curto – afinal, as finanças da APB não possibilitam um Boletim maior -, por esse motivo, vamos apenas tocar em alguns aspectos do problema (será mesmo um problema?).
O amplo debate, a discussão, a troca de ideias propiciam o desenvolvimento de qualquer área do conhecimento. O entendimento e a compreensão levam, não obrigatoriamente, mas quase sempre, a uma postura mais crítica da realidade. No entanto, o poder, representado por aqueles que o detém, não está, obviamente, interessado em possibilitar a aquisição desse senso crítico, não está interessado em permitir que sejam criados mecanismos que redundem numa contestação à sua existência.
Dessa forma, as Instituições por eles dominadas, estão estruturadas de tal forma que orientam os dominados em direção aos interesses daqueles. A biblioteca não é uma dessas Instituições? Certamente que sim. Nosso discurso apregoa a democratização da informação, o acesso à cultura. Entretanto, nossa prática é totalmente diversa. Fornecendo informações apenas àqueles que possuem um mínimo de iniciação para usufruí-las, ampliamos o fosso existente hoje na “distribuição da informação” entre nossa população.
Se você está imaginando que isso é outra história, sinto desapontá-lo, estamos singrando os mesmos mares (de lágrimas), estamos caminhando por sobre os mesmos muros (de lamentações). O atendimento que oferecemos aos nossos usuários; a preocupação com os analfabetos, com a população “carente de informações”; o impossibilitar o debate e a discussão, impondo o silêncio como a única forma de se conseguir cultura; a repressão ao manuseio dos livros numa tentativa de mantê-los novos e intactos; o horário de atendimento que nunca coincide com o que permite o acesso da maior parte da população – todos esses itens também estão contidos no tema abordado.
Voltando ao silêncio: nos hospitais o silêncio, solicitado em placas e cartazes, é indispensável para o bem-estar dos doentes. Nas bibliotecas, o silêncio, solicitado através de ásperos e intransigentes “psius”, é necessário para quê? Existe algum vínculo entre cultura e doença (se a relação lhe parecer forçada, desconsidere)? A vida urbana é pródiga em barulhos, sons. Por que essa irreal necessidade em separar a biblioteca do modo de vida da população?
O trabalho da biblioteca está voltado para a pessoa, para o indivíduo. Sim, mas para a pessoa, para o indivíduo considerado apenas de forma isolada, desagregado do relacionamento de seu contexto social. Será esse um dos problemas para o não reconhecimento, por parte da população, da função social da biblioteca?
A gente volta a falar sobre o assunto.
(Publicado originalmente em: APB Boletim, São Paulo, v.3, n.2, p.1, ago. 1986)