ARTIGOS E TEXTOS


DO GIZ AUTORITÁRIO À INFORMAÇÃO DEMOCRÁTICA

1 INTRODUÇÃO

Tanto um modelo de comunicação em sala de aula como um em biblioteca devem, na sua concepção, apresentar causas tão díspares e problemáticas que seria temeroso abordá-las neste pequeno texto. Como pressuposto, esqueceremos as causas, focalizando apenas o que ocorre, a partir de uma visão nossa e de outros autores, dentro da maioria das salas de aula e das bibliotecas quanto a “transmissão” de conhecimento/informações ou, se assim o desejarmos, quanto à relação professor/aluno/informação e bibliotecário/usuário/ informação.

Com base nos modelos formulados, objetivaremos enfocar a relação, interação ou interferência existente entre eles.

 

2  O MODELO DE COMUNICAÇÃO EM SALA DE AULA

O modelo de comunicação tradicionalmente apresentado é, segundo José Teixeira Coelho Netto, totalmente inadequado. Tal modelo (Fonte - Receptor), cuja falência foi irrecorrivelmente decretada, pressupunha “... que o processo era todo orientado a partir da fonte para o receptor e que, mais ainda, a mensagem era produzida pela fonte e para o receptor. A fonte surgia assim como ponto de partida de todo o processo e paternalisticamente levando-as ao receptor” (COELHO NETTO, 1978, p.30). O paternalismo sempre caracterizou o processo de ensino, não só do ponto de vista do professor, como uma forma de justificar seu despreparo; seus poucos conhecimentos pedagógicos; a manutenção da “autoridade” e sua insuficiente e ineficaz atualização, como também, do ponto de vista da escola institucionalizada, como forma de instrumentalizar, com informações, ideias e necessidades geradas no seio da classe dominante, aqueles que, oriundos dessa classe, se apropriarão dos conhecimentos para reproduzir indefinidamente a situação que lhes é favorável. Explicando melhor: a Escola, caracterizada como um Aparelho Ideológico de Estado (ALTHUSSER, 1983) deve, utilizando-se de informações técnicas, saber erudito etc., repassá-los aos seus alunos, para diferenciá-los e apresentá-los como os únicos preparados para ascender socialmente, ocupando cargos de direção e comando da sociedade.

Para isso, é evidente que a força (uma clara relação com os aparelhos repressores do Estado) se faz presente, concretizada no medo e na dependência (relação com paternalismo) que permeiam todas as fases do ensino.

Torna-se óbvio que o modelo de comunicação utilizado nas salas de aula é exatamente aquele que no início foi considerado inadequado, ou seja, tudo parte da fonte (que serve como receptor dentro do processo ideológico), enquanto o receptor, passivamente, absorve.

Corroborando com essa tese, Luís Augusto Milanesi apresenta o processo de ensino, usual em uma sala de aula:

O professor, ciente do programa, prepara as suas aulas, provavelmente a partir de alguns textos; em classe, expõe da melhor maneira possível o que preparou, usando uma lousa e, quando mais sofisticado, recursos audiovisuais. Não deve ser descartada a possibilidade do ditado do ‘ponto’. Ao aluno, cabe reter as palavras do mestre, aquilo que ele conta. Os que têm memória fraca usam recursos mnemônicos. Normalmente, os discentes colhem as palavras do professor, registrando-as no caderno para posterior estudo. (...) Após o processo de transferência de informação do professor para o aluno cabe a este provar que reteve na memória as lições. O aluno é, então, provado, averiguando-se no fim do período letivo se ele sabe reproduzir aquilo que o professor disse, ou melhor, aquilo que o professor pretende que ele saiba. (MILANESI, 1978, p.50-51).

A despeito de várias tentativas de modificação e alteração, as exceções só fazem confirmar as regras: em sala de aula, a transferência de informações acontece como exposto na citação. O professor transfere “pacotes” fechados (que não tiveram na sua elaboração a participação dos alunos, a exemplo de outros tantos pacotes já por demais conhecidos) de informações – absorvidos, por sua vez, na época em que estava do outro lado do processo de ensino institucionalizado – e  exige que os alunos os engulam prazerosamente e os vomitem, integralmente, quando solicitados.

A flecha do modelo de comunicação, nesse caso, não só se dirige como acerta e penetra no receptor.

Antônio Cícero de Souza, lavrador de sítio na estrada entre Andradas e Caldas, no sul de Minas Gerais, diz:

Agora, o senhor chega e pergunta: ‘Ciço, o que é educação?’ (...) ‘É do mesmo que a gente fala quando diz essa palavra?’ Aí eu digo: ‘Não.’ (...) Comparação, no seu essa palavra vem junto com quê? Com escola, não vem? Com aquele professor fino, de roupa boa, estudado; livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito separado, cada coisa do seu jeito, como deve ser. Um estudo que cresce e que vai muito longe de um saberzinho só de alfabeto, uma conta aqui e outra ali. Do seu mundo vem um estudo de escola que muda gente em doutro. É fato? Penso que é, mas eu penso de longe, porque eu nunca vi isso por aqui. (...) A educação que chega pro senhor é a sua, da sua gente, é pros usos do seu mundo. Agora, a minha educação é a sua. Ela tem o caber de sua gente e ela serve pra que mundo? (...) Porque mesmo nessas escolinhas de roça, de beira de caminho, (...) mesmo quando a professorinha é uma gente daqui, o saber dela, o saberzinho dos meninos, não é. Os livros, eu digo, as idéias que tem ali. (...) Sabe? Tem vez que eu penso que pros pobres a escola ensina o mundo como ele não é. (SOUZA, 1982, p.7-10).

Ainda sobraram dúvidas? Contestamos, acompanhando Paulo Freire (apud BRANDÃO): “Na verdade, se dizer a palavra é transformar o mundo, se dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas um direito dos homens, ninguém pode dizer sozinho a palavra. Dizê-la sozinho significa dizê-la para os outros, uma forma de dizer sem eles e, quase sempre, contra eles.” (BRANDÃO, 1984, p.84).

 

3  O MODELO USUAL DE COMUNICAÇÃO EM BIBLIOTECA

Retomando o texto já citado de José Teixeira Coelho Netto, nos deparamos com o seguinte: no modelo do sistema de comunicação por biblioteca,

as informações são estocadas (...) e ficam à disposição do receptor que se dirige a elas e as escolhe, recebendo-as de acordo apenas com seus interesses e motivações (...). Claro que pode haver uma intermediação entre ele e a informação, intermediação representada pelo próprio sistema da biblioteca e seus agentes (o bibliotecário, o fichário, índices, etc.) mas de qualquer modo essa intermediação é posta a serviço do receptor e nunca se coloca na postura da Fonte dos modelos tradicionais. (COELHO NETTO, 1978, p.31).

Temos, então, que ao contrário do modelo em sala de aula, o modelo de comunicação em biblioteca não está estruturado para oferecer “pacotes” estanques de informações ao receptor/usuário. Diversamente, na biblioteca, as informações são colhidas pelo usuário a partir de seus interesses, dúvidas, necessidades e curiosidades, com o bibliotecário sendo o intermediador apenas quando solicitado como tal.

A palavra “apenas”, utilizada no parágrafo anterior, acarreta algumas dúvidas: a ingerência do bibliotecário na relação Fontes de informação/Usuário acontece apenas quando sua participação é solicitada? Outros fatores não têm interferência no processo de absorção de informações?

A disposição dos materiais nas estantes de uma biblioteca, oriunda, principalmente, de uma determinação não neutra de todo um “processo técnico”, implica num discurso próprio e único, que hierarquiza e departamentaliza o conhecimento humano seguindo as regras de um código universal. Inegavelmente, essa não imparcialidade, essa departamentalização e hierarquização, oferecem obstáculos na relação Resposta/Questão. O processo de transferência de informações torna-se então, limitado, acarretando sérios prejuízos ao produto final desse processo. As “estratégias de busca”, voltadas para uma maior eficiência na recuperação da informação e nos resultados da pesquisa, podem minimizar esses prejuízos. No entanto, o bibliotecário – entendido neste espaço de atuação como aquele que deve intermediar a pergunta e a resposta, servindo como interprete e tradutor da linguagem natural/linguagem documental – não está adequadamente preparado (muito por sua própria culpa) para acompanhar os usuários na recuperação e orientá-los nas buscas.

Outro fator de interferência prejudicial no modelo de comunicação em biblioteca apresentado: as editoras, dentro de uma visão puramente comercial (que não pode ser refutada de uma maneira simplista), não publicam textos representativos de todas as correntes de pensamentos e ideias, preferindo veicular aqueles que pouco ou nada de inovador acrescentam (exceções à parte, obviamente) e cuja aceitação é praticamente certa.

Intervenções do governo (censura, verbas etc.); o modelo imposto na escola (*), calcado no modo e na imposição; a disponibilidade de materiais representativos de todo o conhecimento humano; a falta de conhecimento e de interesse em conhecer, por parte do bibliotecário, das necessidades da comunidade onde atua; os sistemas de controle, armazenamento, recuperação etc., de informações utilizadas pelas bibliotecas; a situação sócio-política-econômica e cultural do país  etc., pressionam os sujeitos do processo de comunicação em bibliotecas a alterá-lo, enquadrando-o num modelo mais usual e aceito, ou seja, aquele utilizado em sala de aula.

As dúvidas e os problemas apresentados, embora interfiram, não modificam o modelo que aceitamos como usual em bibliotecas: “... a simples consulta a um catálogo ou a busca numa estante podem ser caracterizadas como uma prática, em certa medida, que contradiz senão o sistema de ensino que está escrito nas leis, decretos, normas e portarias, pelo menos a prática estabelecida.” (FREIRE apud BRANDÃO, 1984, p.51).

Por mais limitado que possa ser, o processo de transferência de informação é desencadeado por iniciativa do usuário e exige sua participação para se desenvolver.

 

4  RELAÇÃO ENTRE OS MODELOS

Pode-se falar em interação entre os modelos? Pode existir uma “coexistência pacífica” se eles são radicalmente opostos? Obviamente, não. O professor, inserido no modelo aqui exposto para sala de aula, não pode aceitar a biblioteca, já que esta põe em dúvida seus conhecimentos, questiona suas posições, apresenta aos seus “comandados” um rol de opções que inegavelmente vão interferir na sistemática impositiva utilizada por ele em suas aulas. “... as técnicas desenvolvidas para a busca de informações articulam uma atividade incômoda ao processo de transferência de pacotes de sabedoria do professor ao aluno.” (MILANESI, 1978, p.51)

Os alunos, face ao modelo sob o qual estão subjugados em sala de aula, vêm-se despreparados e inseguros para utilizar os mecanismos e os processos (não estaremos errados, adjetivando-os de democráticos) à disposição nas bibliotecas. Estas apresentam respostas que satisfazem questões, não de uma maneira única, como se fossem “a verdade”, mas de forma múltipla, exigindo uma opção, um posicionamento coerente com uma estrutura de pensamento e que permita uma transformação, uma leitura muito mais crítica de sua relação com o mundo. Na medida em que o aluno percebe, mesmo que inconscientemente ou com pouca nitidez, essa diferença, o atrito entre os modelos é inevitável.

Assim exposto, a mudança de um modelo impositivo e ditatorial por um mais democrático e participativo, baseado nas necessidades e diferenças de classes e de comunidades, através de uma exigência de um dos sujeitos do processo de ensino, parece simples e fácil: basta que a biblioteca continue existindo, amplie e facilite o acesso às informações. Mas, essa transformação não é simples e fácil, ao contrário:

... a luta que se abre para a Biblioteconomia não é pequena: trata-se de compatibilizar seu sistema com os demais sistemas de comunicação existentes na sociedade, porém não reforçando o seu conforme os outros, mas tentando criar as condições, dentro da limitada esfera de ação, para que os outros adaptem seus sistemas ao dela. Enquanto isso não ocorrer, a biblioteca está condenada ao ‘fracasso’ – mas este ‘fracasso’ é a própria, e uma das únicas, garantia de um desenvolvimento do sistema de comunicação na sociedade, considerado em sua totalidade. (COELHO NETTO, 1978, p.32).

 

BIBLIOGRAFIA

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Educação popular. São Paulo: Brasiliense, 1984.

COELHO NETTO, José Teixeira. A biblioteca como modelo de sistema de comunicação. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, São Paulo, v.11, n.1/2, p.29-32, jan./jun. 1978.

MILANESI, Luís Augusto. Orientação bibliográfica: uma experiência. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, São Paulo, v.11, n.1/2, p.47-64, jan./jun. 1978.

SOUSA, Antônio Cícero de. Prefácio. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues, (org.). A questão política da educação popular. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.

 

NOTAS

* “... o professor deve ser um recipiente pleno de saber e o aluno um recipiente vazio à espera da sabedoria dos profissionais do ensino. Essa idéia, infelizmente não muito rara, acaba sendo um obstáculo a um trabalho escolar que exclua a prática da imposição de informações.” (MILANESI, p.59).

 

(Palestra proferida em 1987)

(Publicado originalmente em: ALMEIDA JUNIOR, Oswaldo Francisco de. Sociedade e Biblioteconomia. São Paulo: Polis, 1997.)

Autor: Oswaldo Francisco de Almeida Junior

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OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.