ARTIGOS E TEXTOS


APRESENTAÇÃO

(Livro: SILVA, Rovilson José da. Biblioteca escolar e a formação de leitores: o papel do mediador de leitura. Londrina: EDUEL, 2010. p.11-14)

 

Toda palavra é andante, pois não se fixa, duradouramente, em nenhum suporte. Qual o livro que prende a palavra? As letras se aglutinam, entre espaços irregulares, formando linhas e páginas. Todo livro se constitui de manchas indecifráveis quando no escuro do livro fechado. Não basta a luz para que o livro se desvele, é preciso o contato, a relação entre seu conteúdo e o leitor. É este, na verdade, quem determina o conteúdo. O livro é reescrito pelo leitor que, na leitura, se transforma em coautor, em com-autor.

O livro existe e se constrói na leitura; se reconstrói em cada leitura. Assim, as palavras não estão fixas nele; o significado delas se altera em cada contato, em cada relação – não importando se é o mesmo leitor que volta a se embrenhar pelos caminhos já anteriormente percorridos.

As palavras são mutantes: se revestem de significados quando envolvidas nas teias, nos emaranhados das vidas pessoais. Elas não são decifradas apenas com mera decodificação da justaposição de letras; ao contrário, elas são dependentes do universo de cada leitor e, em especial, do momento em que ele está vivendo. As concepções, as ideias, os credos, os interesses, os desejos, as vontades, enfim, o acervo de vida de cada leitor interfere e determina os significados das palavras, impõe uma leitura diferenciada.

Depois de utilizado, o livro volta a ser fechado inteiro, intacto. Fisicamente, nada dele foi retirado. Não lhe faltam pedaços nem foi ele mutilado – desde que, lógico, o leitor não o tenha depredado voluntária ou involuntariamente. O livro é o mesmo após uma ou várias leituras, embora estas, todas, tenham sido diferenciadas.

As emoções presentes nos livros não se vinculam, necessariamente, a eles. Os mediadores relacionam autores e leitores; experiências de vida retratadas e apreendidas, confrontadas; ideias veiculadas e aceitas ou refutadas; propostas defendidas e discutidas. Os livros possibilitam debates e se transformam no teatro em que interagem palco e plateia, indistintos quando o ato de leitura e seus resultados se realizam.

Não há palavras passivas; ao contrário, elas caminham, andam. As palavras são andantes.

A biblioteca sempre foi retratada como algo estático, passivo. Um lugar calmo, em que o silêncio predomina. Calados estão os livros (único suporte que o imaginário popular entende presente nas bibliotecas), quietos, mudos, sufocados por anos de história e de pó. Lá estão apenas para serem preservados. Como os livros, as pessoas que frequentam esse espaço também devem buscar o silêncio. Mais do que isso, devem cultuar a busca individual pelo conhecimento, a solidão como forma de interagir com a cultura. A fruição da leitura se daria apenas no isolamento. No entanto, como afirma Roger Chartier (1), até meados da Idade Média, a leitura era feita em voz alta. A leitura silenciosa surge com o nascimento das universidades, provavelmente como forma de diferenciar seus alunos – que lidavam com o conhecimento erudito – do restante da população. As bibliotecas alertavam seus alunos para essa “diferença” exigindo silêncio daqueles que teimavam em ler em voz alta. A leitura não é um ato mecânico, destituído de implicações políticas, sociais, culturais, educacionais.

A biblioteca é a grande, a imensa arena em que se digladiam as ideias, as concepções, os modos de entender o mundo. Ela permite e incentiva essa luta. Não há batalha silenciosa. Quando leio, luto com as idéias, com os pensamentos. Discuto com o ausente e, muitas vezes, desconhecido autor. Apresento meus argumentos para mim mesmo e me alço em juiz das verdades que resultam desse confronto. Meus conhecimentos se defrontam com o novo e se transformam, mesmo contra minha vontade. Luis Milanesi (2) afirmava que a biblioteca deve organizar informações para desorganizar cabeças.

O aparente silêncio da biblioteca esconde a luta do homem por compreender, entender e explicar o mundo e, principalmente, a si mesmo.

A biblioteca escolar – um dos temas deste livro –, ao contrário da propalada passividade e quietude atribuídas a todo tipo de biblioteca, deve ser entendida como o pulmão da escola, oxigenando e renovando o conhecimento que circula nas salas de aula, nos colégios invisíveis, na administração e no próprio em torno da escola: entre os pais e parentes, colegas dos alunos e a comunidade na qual está inserida. A biblioteca escolar traz o novo para dentro da escola; alimenta constantemente os seus usuários de conhecimentos.

As palavras andam e falam...

Os textos sobre biblioteca escolar, infelizmente, são em número insuficiente para atender aos reclamos e interesses daqueles que se interessam pelo tema. Boa parte dos textos, afirmo, repisa ideias e conceitos, patinando sobre concepções insistentemente defendidas, reforçando posições dissociadas de bases pedagógicas, apoiando visões conservadoras, enfim, nada ou pouco contribuindo para os debates da área.

Com outros autores, Bernadete Campello (3), pesquisando a “base de dados bibliográfica Literatura em Biblioteca Escolar – LIBES, que inclui artigos de periódicos, dissertações, teses e trabalhos apresentados em eventos sobre o tema publicados no Brasil desde a década de 1960”, localizou, em junho de 2006, “39 trabalhos de pesquisa, num total de 332 referências, o que indica que a biblioteca escolar tem sido um tema pouco atrativo para os pesquisadores”.

A pesquisa sobre biblioteca escolar não atrai os estudiosos da área da Ciência da Informação. Esse é um dos itens que demonstram a importância do livro de Rovilson José da Silva. Não apenas a biblioteca escolar é tema de fundo de seu livro, como o assunto é abordado de maneira inovadora.

Com sólida base teórica, o autor inseriu em seu texto a experiência adquirida em anos de vivência com leitura e bibliotecas escolares. O projeto “Palavras Andantes” – que Rovilson idealizou e implantou junto à Prefeitura Municipal de Londrina – contextualiza e solidifica as ideias e concepções presentes na pesquisa que desenvolveu e que resultou no presente trabalho.

O livro será muito bem recebido. Rovilson permitirá que suas palavras caminhem, circulem entre os que pesquisam e trabalham com leitura e/ou bibliotecas escolares. Mais do que isso: as palavras de Rovilson desordenarão cabeças.

 

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(1) CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.

(2) MILANESI, Luis Augusto. Ordenar para desordenar. São Paulo: Brasiliense, 1986.

(4) CAMPELLO, Bernadete et al. Literatura sobre biblioteca escolar: características de citações de teses e dissertações brasileiras. Transinformação, Campinas, v.19, n.3, p.227-236, set./dez, 2007.

Autor: Oswaldo Francisco de Almeida Júnior

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OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.