BIBLIOTECA ESCOLAR COMO ESPAÇO DE RESISTÊNCIA
Deise Luz do Espírito Santo
Pamela Oliveira Assis
Atuar em uma biblioteca escolar permite observar a formação do sujeito não só da perspectiva leitora, como também social e cultural. Para isso, é necessário que esse ambiente desperte nos sujeitos um sentimento de pertença e acolhimento. Mas antes de proporcionar essa vivência, a biblioteca escolar, enquanto dispositivo informacional, precisa ser entendida como um ambiente para tal. E, para isso, talvez seja necessário mais do que um bibliotecário que entenda seu lugar e importância, mas a mudança de uma percepção do próprio sistema.
Quem frequentou ou trabalhou em uma biblioteca escolar provavelmente já teve a sensação de que o espaço pode, a qualquer momento, funcionar como um depósito temporário para a instituição. Ou até mesmo, de que é um ambiente no qual a primeira e única regra seja o silêncio.
Segundo a definição da IFLA, a biblioteca escolar
[...] é um espaço de aprendizagem físico e digital na escola onde a leitura, pesquisa, investigação, pensamento, imaginação e criatividade são fundamentais para o percurso dos alunos da informação ao conhecimento e para o seu crescimento pessoal, social e cultural. (IFLA, 2016, p. 19).
Se esse dispositivo pode ser entendido como um espaço de aprendizagem para investigação, criatividade e crescimento cultural, será que o silêncio absoluto combina com o ambiente? Compreendemos que existam momentos nos quais a ausência de barulho seja necessária, mas não que ela seja a característica principal da biblioteca escolar. A mesma reflexão é válida no que se refere à organização do ambiente, uma vez que a biblioteca escolar é fundamental no crescimento dos estudantes e os proporciona diferentes tipos de aprendizagem, como será construída a relação dos sujeitos com um ambiente desarmônico? De acordo com Carvalho, Sisla e Nalini (2009, p. 41) “[...] todo ambiente é carregado de intencionalidade. A maneira como o espaço está organizado reflete o que queremos que aconteça ali e que relações permitimos que o usuário estabeleça com o lugar.” Portanto, percebemos que a biblioteca escolar nem sempre vai ser silenciosa, muito menos que deva funcionar como um depósito de livros, caixas e outros objetos. A biblioteca escolar, na verdade, é um espaço de resistência.
Ao buscar o significado da palavra em um dicionário, podemos encontrar que resistência é uma força que se opõe a outra. No que se refere à biblioteca escolar, existe a oposição contra o pensamento enraizado de que esse ambiente não tem vida e características próprias que vão além da vivência com a leitura de signos linguísticos. Se, na história das bibliotecas e outros ambientes de informação, o paradigma preservacionista se fez por muito tempo presente, hoje se reivindica o foco na disseminação e democratização de seu espaço e recursos, tendo como foco o sujeito e as experiências de troca e reflexão que uma mediação da informação consciente proverá, visando a apropriação da informação.
Nas bibliotecas escolares, que até mesmo pelo público bastante jovem com o qual lidam, é comum propagarem uma cultura protecionista, no que se refere aos espaços e aos recursos disponíveis, como se estes fossem algo a ser preservado do contato humano, ou socializado sempre sob condições de excessivo controle. Se considerarmos a realidade das escolas públicas, tal conduta, talvez, seja ainda mais aparente, dado a burocratização dos processos e estruturas governamentais, a precariedade, o histórico de sucateamento e até mesmo uma maior estigmatização de seu público.
Não à toa, Perrotti e Pieruccini enunciam que, embora frutos de outros tempos, muitos dispositivos culturais modernos apresentam “[...] dissonância conceitual e operacional [...] quando se tem em mira aspirações de relação ativa e criativa com a cultura.” (PERROTTI; PIERUCCINI, 2007, p. 63). Talvez seja paradoxal notar que, ao mesmo tempo em que vigora uma conduta protetora no que tange ao patrimônio, muitas vezes se observa um olhar e uma atitude de subestimação e descuido quanto às bibliotecas escolares. Dados do Anuário da Educação Básica 2021 apontam que, em 2020, 57% das instituições de Ensino Fundamental do país apresentaram bibliotecas e/ou salas de leitura, enquanto 88,4% das instituições de Ensino Médio dispunham destes espaços. (CRUZ; MONTEIRO, 2021, p. 27). Certamente, há muitos espaços vazios – geográfica, simbólica e politicamente – a serem ocupados por bibliotecas nas escolas públicas e privadas do País. Existem lutas ainda necessárias para que se cumpram os marcos legais protetivos no Brasil e no mundo, a exemplo do manifesto da IFLA/UNESCO (1994) e da Lei nº 12.244/2010, que determinava a universalização das bibliotecas escolares em 10 anos.
Evidenciamos, porém, que mesmo nas bibliotecas atuantes, que dispõem de sujeitos qualificados para desenvolver as suas atividades, se percebe a necessidade de demarcação de espaço. Esta necessidade se dá por diversos fatores, mas é em grande parte consequência do ideário neoliberal vigente na sociedade e, destacadamente, na própria Educação. Não interessa a este ideário que as escolas sejam grandes fóruns de desenvolvimento do protagonismo social e da cidadania, pois, “[...] o neoliberalismo representa um projeto de construção de uma nova subjetividade, de uma nova racionalidade, na qual o interesse do coletivo é ameaçado e ‘destruído’ nas entranhas do próprio social.” (GOMES, 2021, p. 9).
Interessa, de outra parte, que as escolas percebam os estudantes, invariavelmente, na sua condição de futuros trabalhadores, visando pré-adequá-los o mais cedo possível. Neste estado de coisas, espaços como as bibliotecas tendem a permanecer subjugados e vistos como de segunda classe ou de menor importância, tornando-se suscetíveis ao desvirtuamento de suas funções ao menor descuido de seus responsáveis.
Não é raro observar, no cotidiano destes dispositivos, tentativas de distorção de suas funções, seja com a alocação de material inadequado - de ventiladores velhos a caixas sem destinação clara - ou com a apropriação do espaço para atividades que destoam do planejamento das bibliotecas, a exemplo da realização de aulas que não se conectam, de fato, aos seus propósitos, visando apenas usufruir de suas instalações, sem diálogos qualificados ou o estabelecimento de parcerias qualificadas.
No cotidiano das bibliotecas há sempre, assim, uma disputa presente, disputa esta que requer dos sujeitos que as conduzem uma postura de zelo, firmeza, consciência e resistência. Segundo Gomes (2021), em referência a Perrotti (2017), quando este autor “[...] revisitou a gênese do conceito em Antígona, ele nos permitiu superar o uso mais estrito e vulgarizado do termo protagonismo.” (GOMES, 2021, p. 6). Para a autora, este resgate tornou possível “[...] recuperar dois núcleos de sentido que considero fundantes do protagonismo: a resistência e a consciência social.”
Esta resistência necessária remete às ações de mediação implícita da informação, aquelas que prescindem da presença do usuário para serem realizadas. Em especial às ações de gestão.
À gestão das bibliotecas são associados atributos como a promoção da ambiência e da formação e desenvolvimento de coleções. Cabe também à gestão estabelecer os vínculos institucionais que serão decisivos para a demarcação do espaço que o dispositivo ocupará em relação à instituição onde se insere. Esta atuação passa pelo diálogo com as diversas instâncias e sujeitos que compõem a comunidade escolar, a fim de alinhar atuação e objetivos. É importante que a biblioteca esteja em sintonia com os propósitos da instituição, mas também que se faça ouvir em suas demandas e que construa, assim, cotidianamente, a consolidação do seu espaço geográfico e simbólico.
Tudo isto, porém, deve-se lembrar, está vinculado à consciência destes sujeitos mediadores, à clareza que precisam ter sobre a importância do que fazem e sobre os propósitos de seu trabalho, tendo como horizonte a apropriação da informação por parte dos sujeitos. De acordo com Gomes (2019, p. 18), “Não se tem efetivamente mediação da informação em favor do desenvolvimento do protagonismo social sem a sua execução consciente.” É o avanço na “[...] realização de uma mediação mais consciente da informação [...]” que evidenciará as relações entre informação e o protagonismo social. (GOMES, 2019, p. 19).
Ao tratar sobre protagonismo social, também falamos de resistência. Para Perrotti (2017), o sujeito que assume esse lugar enfrenta antagonismos que afetam o coletivo. Trata-se de um sujeito que frente aos obstáculos sociais, decide assumir seu lugar, luta e resiste para que as singularidades de cada um possam ser respeitadas. Ou seja, acredita-se que ao possuir uma postura consciente, os mediadores também estarão assumindo seus lugares como protagonistas, que agem em favor do meio, de modo que os sujeitos possam se reconhecer e contribuir para uma transformação, seja ela da ideia sobre um dispositivo informacional, como a biblioteca escolar, ou do próprio sujeito que precisa ampliar seus olhares sobre tal.
Ademais, acredita-se também que o alcance de alguns elementos pode colaborar nesse processo, a exemplo da valorização da dialogia, da intersubjetividade, do acolhimento, do estímulo à crítica, das trocas e das sucessivas construções e reconstruções de significados sobre o mundo e sobre os próprios sujeitos participantes das ações. Se estes forem os parâmetros norteadores da ação cotidiana da mediação, serão também o norte que guiará a gestão da biblioteca para os enfrentamentos necessários à demarcação de seu espaço de atuação. Uma biblioteca atravancada em seus processos, rotinas e atividades estará estagnada frente à tarefa de mobilizar os sujeitos para expandir o que aprendem para fora do espaço escolar e para outros contextos de suas vidas, aprendendo e praticando a cidadania. Somente emancipada, a biblioteca pode contribuir com a formação de protagonistas sociais. Somente emancipada, a biblioteca pode contribuir para a emancipação social.
Diante do exposto, entende-se que a melhor forma de promover uma biblioteca emancipada é no desenvolvimento de ações propositivas que mobilizem a comunidade escolar e ressignifique o que esses sujeitos compreendem sobre esse ambiente informacional. E esse é o ponto fundamental do que vem sendo discutido neste texto, ao defender uma biblioteca escolar emancipada e que resiste, não se trata de deixar de lado o seu objetivo principal, que é formar leitores e cidadãos críticos, mas sim, abranger as tantas possibilidades que fazem parte da vida do sujeito e contribuem para o desenvolvimento e crescimento deste enquanto ator social.
Posto isso, quando se representa a biblioteca escolar como espaço de resistência e defende-se que esse dispositivo seja emancipado, não se trata de atribuir um peso a um espaço que encanta, envolve e emociona. Mas sim, evidenciar que a biblioteca (re)existe todos os dias e que para estar nesse ambiente, é preciso estar disposto a protagonizar.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Ana Carolina; SISLA, Eliana Chalmers; NALINI, Denise. O espaço e a leitura. Revista Avisa Lá, São Paulo, n. 40, p. 41-48, jun. 2009. Disponível em: https://avisala.org.br/index.php/noticias/o-espaco-e-a-leitura/. Acesso em: 15 dez. 2022.
CRUZ, Priscila; MONTEIRO, Luciano. (org.). Anuário brasileiro da educação básica: 2021. São Paulo: Moderna, 2021. 188 p. Disponível em: https://todospelaeducacao.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2021/07/Anuario_21final.pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
GOMES, Henriette Ferreira. Protagonismo social e mediação da informação. Logeion: Filosofia da informação, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 10-21, mar./ago. 2019. Disponível em: https://revista.ibict.br/fiinf/article/view/4644/4046. Acesso em: 14 dez. 2022.
GOMES, Henriette Ferreira. Protagonismo e competências em informação: conferência de encerramento do V COINFO. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, São Paulo, v. 17, n. esp. V Seminário de Competência em Informação, p. 01-18, 2021. Disponível em: https://rbbd.febab.org.br/rbbd/article/view/1619/1265. Acesso em: 14 dez. 2022.
INTERNATIONAL FEDERATION OF LIBRARY ASSOCIATIONS AND INSTITUTIONS (IFLA); UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION (UNESCO). Manifesto IFLA/UNESCO para biblioteca escolar, 2000. Disponível em: https://www.ifla.org/. Acesso em: 15 dez. 2022.
PERROTTI, Edmir. Sobre informação e protagonismo cultural. In: GOMES, Henriette Ferreira; NOVO, Hildenise Ferreira (Orgs.). Informação e protagonismo social. Salvador: EDUFBA, 2017, cap. 1, p. 11-25.
PERROTTI, Edmir; PIERUCCINI, Ivete. Infoeducação: saberes e fazeres da contemporaneidade. In: LARA, Marilda Lopez Ginez de; FUJINO, Asa; NORONHA, Daisy Pires. (org.). Informação e contemporaneidade: perspectivas. Recife: Néctar, 2007. p. 47-96. Disponível em: http://www2.eca.usp.br/nucleos/colabori/documentos/Infoeducacao.pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
Deise Luz do Espírito Santo - E-mail: deiseluz.santo@gmail.com
Mestranda em Ciência da Informação do PPGCI/UFBA
Orientada por: Henriette Ferreira Gomes
Pamela Oliveira Assis - E-mail: pamela.oliveiira@outlook.com
Egressa do Mestrado em Ciência da Informação do PPGCI/UFBA
Orientada por: Raquel do Rosário Santos