VIVÊNCIAS (DES)LATTES-LIANAS


INSIGHT: LEITURA E "PALAVRAMUNDO"

Ao ler o livro de Paulo Freire “A importância do ato de ler”, identifiquei-me com a experiência existencial que a leitura do mundo pode proporcionar, nomeado de “palavramundo”, uma relação das próprias experiências com o mundo que nos apresenta e a capacidade de ler o mundo ao nosso redor, que ultrapassa a leitura da palavra escrita. A "palavramundo" é percebida, de forma densa, de forma percebida, naquilo que afeta o seu ser e transforma para as diversas expressões do que foi aprendido. Além disso, ela é experiencial.

A leitura do mundo é relevante para o trabalho de investigação científica, por procurar se aproximar e demonstrar o que a sociedade, em sua diversidade, está criando como fenômeno e que podem ser transformados num documento investigativo.

Com isso, estou dizendo que as ideias para escrever determinados artigos surgem da experiência de ler o mundo ao meu redor, e não de leituras superficiais. Apenas a observação foi feita, mas deixei-me afetar pelo mundo que estou lendo, que está ao meu redor e estou inserido nele, na ação de experiência, como Freire (1989, p. 9) aborda que “a linguagem e realidade se apreendem dinamicamente”.

Os detalhes do dia a dia não estão fixos, eles se movem depressa. Cada expressão que pode ser percebida como habituais, como uma conversa entre dois jovens sobre política, uma viagem de ônibus em que observo a cidade, as ações de movimento no ônibus, como o do garoto que entra para cantar rap em troca de uma moeda dos passageiros e conta sua história do motivo de estar fazendo aquilo, ou uma ida à feira, podem ser nuances para investigar determinados eventos, vistos como "corriqueiros" e serem transformados em investigação cientifica ao serem relacionados com teorias que fazem aproximações com a realidade. “É como se estivesse fazendo a ‘arqueologia’ de minha compreensão do complexo ato de ler, ao longo de minha experiência existencial (FREIRE, 1989, p. 12).

Nesse ponto, o pesquisador deve estar atento para a afetação das linguagens que se apresentam e podem ser úteis para o mundo científico. Por exemplo, a dinamicidade de sentido encontra-se quando vou à feira do Ver-o-Peso. Observo as diversas linguagens presentes no contexto da feira do Ver-o-Peso, que estão atreladas ao barulho, aos falatórios, desde os dialetos paraenses pronunciados nas conversas, ao vendedor que usa a gíria e sua criatividade para chamar clientes; as erveiras com seu saber tradicional e os artefatos culturais que vendem em suas barracas.

As rezas que fazem em algum cliente que vai atrás delas, os nomes dos banhos em vidros coloridos chamados "chega-te a mim", "faz querer quem não me quer", "passar em concurso"; são termos e contextos que podem ser usados nas relações com a teoria, bem como estão inseridos nos saberes dos povos indígenas. A variedade de pessoas que ali frequentam o ambiente também representa o espaço vivido para ser investigado.

Posso analisar a complexidade de signos que se encontram ali, sem ter que usar uma caneta, um papel ou um notebook, mas isso não impede que tenham ideias e transporte para a escrita acadêmica, mediante investigações sobre uma questão que despertou a minha atenção. Paulo Freire tratou dessa questão quando procurava compreender o seu ato de "ler" o mundo particular em que me movia e apresentar-me para ele, enquanto se deixava participar do momento vivido, quando descreve:

Neste esforço a que me vou entregando, recrio, e revivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós - à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores (FREIRE, 1989, p. 9).

A ideia de leitura do mundo é parte da minha trajetória científica. Muitas ideias foram publicadas, da leitura, da experiência e do contexto. É claro, não está somente na “caça” de ideias por meio de livros ou artigos científicos, mas pela minha experiência com o mundo da vida, aquele cuja inferência e descolonizar os estoques de sentidos pelo debate público. Freire (1986, p. 9) explica que é um processo de compreender o mundo de forma crítica para depois codificá-lo por meio da linguagem escrita, “processo que envolvia uma compreensão crítica do ato de ler, que não se limita à decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se estende na inteligência do mundo”.

Sempre se ouvia queixas de jovens da periferia de Belém que eram estereotipados e segregados de forma concludente, porque gostavam de se vestir ou falar de acordo com a comunidade e ficavam sendo ironizados com piadas. Muitas vezes, as pessoas deixaram o seu bairro por morarem na periferia e criaram o imaginário de um lugar “perigoso para viver” e “lugar de medo”, muitas vezes influenciados pela mídia que, através das histórias, o colocava como perigoso.

E, nas conversas que ouvia entre eles, percebi que esse contexto precisava levar para a comunidade científica o conhecimento sobre como os jovens periféricos de um dos bairros mais populosos da Cidade de Belém estavam sendo narrados pela mídia para fortalecer o estereótipo marginalizado e não se sentirem representados pela mídia. O ouvir, conversar e andar com eles, fez com que compreendesse o motivo pelo qual o medo os rodeava sempre quando eram abordados como "malandro (malaco)", pelo simples motivo de terem sua forma identitária de se vestir, como uma blusa, bermuda e sandália, e usar gírias.

O exemplo básico da "leituramundo" foi partir de um texto quando tinha aula com um professor no mestrado em Comunicação de autoria do Fabio Castro (2015). No texto, ele narra uma experiência prévia de uma ida a um baile popular chamado "baile da saudade" na cidade de Belém. Tornou-se um artigo científico, onde narra as conversas ouvidas, a música sentida e compartilhada por outros em um tom intersubjetivo. A música tocada “Ao pôr do sol”, foi um motivo emocional que envolveu os dançantes do baile. Essa emoção compartilhada entre os presentes no baile, quando cientificamente conceituada, era entendida como "semiotical blues" (1), artificios da temporalidade nostálgica.

A pesquisa científica, antes de mais nada, está na análise do mundo que precede a leitura da palavra. Como pesquisadores das Ciências Sociais Aplicadas, nossa iniciativa científica está no mundo fora. A complexidade e as nuances que os fenômenos estão sendo apresentados. A sociedade cria e recria formas de se expressar em diversas linguagens, tem suas abordagens complexas e precisamos ouvir as suas vozes, além da palavramundo, pela legitimação da leitura e escrita cientifica.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

NOTA

1 - CASTRO, Fabio Fonseca. Semiotical blues: artifícios da temporalidade nostálgica. Revista Eco-Pós, v. 18, n.3, 2015.  Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/2490. Acesso em: 02 maio. 2023.


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JETUR LIMA

Doutorando em Ciência da Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (PPGCI-UNESP). Mestre em Ciências da Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGCOM/UFPA). Graduado em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Pará.