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O GREGO DE TOLEDO

Numa manhã de janeiro, do inverno europeu, eu e meus amigos brasileiros partimos de Madrid para Toledo. Viajamos por aproximadamente 75 minutos de ônibus. Estrada tranqüila, céu nublado, chuva fininha, intermitente.

 

Quando chegávamos perto da cidade, a arquitetura e a paisagem não permitiram que pudéssemos ignorá-las. O coração disparou, a pulsação alterada, havia pressa em descer do ônibus e tomar aquela cidade. Na verdade é a cidade que nos tomou antes e nos impeliu para ela.

 

Incrustada na Comunidade Autônoma de Castilla La- Mancha, Toledo permanece no tempo, na memória e vida dos espanhóis. Para Cervantes, a cidade era a glória espanhola. Atualmente sua população gira em torno de 80 mil pessoas. A cidade, além de sua arquitetura é muito conhecida pela produção de aço, especialmente na produção de pequenas ferramentas de aço e facas.      

 

Caminhar por ruas seculares, atravessar o rio Tajo que praticamente circunda a cidade, protegendo-a dia e noite. Esse rio é o maior da Península Ibérica, nasce Tajo na Espanha e desemboca em Lisboa, como Tejo. Em qualquer uma das duas cidades, o rio é majestoso: plácido como um mar em calmaria em Lisboa, sinuoso como o locomover de um réptil em Toledo.

 

Na cidade, a cada passo, é como se ela fosse se apoderando do caminhante, transportando-o para eras longínquas. As ruas de Toledo são sinuosas e estreitas, mas de beleza e preservação indescritíveis.

 

Os rostos que encontrava em Toledo há muito povoavam meu imaginário: trajes de cor escura, rostos afilados, quase tristes. Pareciam uma pintura de El Greco.

 

Nem sempre o lugar onde nascemos será aquele que nos completará como homens e nos impulsionará a deixar para o mundo o registro de nossa passagem pela existência. Nossas paixões podem acontecer em qualquer lugar, seja ele da nossa origem ou não. Domenikos Theotocopoulos, El Greco, nasceu na Ilha de Creta em 1541 e 20 anos depois já estava em Veneza como aluno de Ticiano. Aluno talentoso, mais 10 anos depois já estava em Roma e era famoso, respeitado e protegido de um cardeal da Igreja Católica.   

 

Às vezes é preciso caminhar muito, viajar por culturas diferentes, perder-se e, pouco a pouco, encontrar-se consigo mesmo. A cultura do outro, ainda que pareça em muitos casos fascinante, no dia a dia não é nada fácil de assimilar, de deixar que ela penetre um pouco em nós. Foi assim com El Greco. Depois de Roma, viajou para Espanha, chegou a Toledo e nunca mais saiu de lá.

 

Toledo é uma cidade especial e também tornou-se conhecida pela tolerância religiosa. No passado, possuía grandes comunidades de judeus e muçulmanos, além dos católicos é claro. As construções religiosas estão por toda parte: igrejas e sinagogas.  

 

Caminhar por ruas onde passaram reis, rainhas, grandes artistas, gente desconhecida, gente comum e chegar à Catedral de Toledo, que demorou mais de 200 anos para ser construída, impressiona. Saímos de lá e resolvi me separar dos meus amigos.

 

Fazia frio. Caminhei sem me guiar pelo mapa da cidade, quando parecia que estava perdido, vi uma capela. Era simples do lado de fora. Senti-me impelido a entrar, caminhei dez passos e a igreja mantinha aparência simples, chamava Igreja de Santo Tomé. Essa igreja foi reconstruída em 1323 com o financiamento do Conde de Orgaz.

 

A impressão inicial continuou até que, dentro de uma das capelas, virei à direita e não pude acreditar: na parede estava a pintura de El Greco, chamada O Enterro do Conde de Orgaz. Eu, na verdade, sempre tivera a reprodução dessa pintura, mas nunca busquei saber onde ela estava, acreditava que estivesse num museu. Numa fração de segundo pensei que poderia ser uma cópia, mas o folder da igreja respondeu minha dúvida. O resto foi emoção.

 

O Enterro do Conde de Orgaz foi pintado em 1586 e homenageava o enterro desse fidalgo espanhol que morrera há 250 anos antes, na época que Toledo era capital da Espanha e sediava a Igreja Católica. Quando se olha para a tela de 460X360 cm não há dúvida de que é uma das obras singulares da humanidade.

 

A história representada na pintura é que quando o Conde morreu, dois santos desceram do céu para sepultá-lo. Quando se olha para o quadro é possível perceber dois planos: um terreno e outro divino.

 

No plano terreno, o corpo de Orgaz está ladeado por autoridades da época. A expressão predominante na fisionomia de todos é de tristeza. Dentre os mais de 20 personagens representados no enterro, apenas um olha fixamente para quem observa o quadro. Essa personagem, de acordo com os estudiosos, seria o próprio pintor que se retratou.   

 

O outro plano é o celestial: parece em festa com a chegada da alma do Conde de Orgaz, músicos e seus instrumentos sugerem uma sinfonia agradável, uma atmosfera de leveza envolve o anjo de cabelos louros que conduz a alma do morto ao céu. Do alto da pintura, Cristo, ladeado por sua mãe e São João, também observa a alma a caminho do céu.

 

O frio e a chuva naquele dia em Toledo não me impediram de ver o sol, a beleza que El Greco construiu para encantar um transeunte como eu. 


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.