LEITURAS E LEITORES


DOR

A dor é um sentimento único e que nos faz humanos. São três letras para expressar uma perda, um sentimento desigual que cava um poço no nosso peito, cala nossa voz e, às vezes, surge em forma de lágrimas. Dor tristeza.

 

O tamanho da dor contrasta com a economia de sua expressão, pois após os primeiros momentos em que ela aparece, traz consigo um estado de mudez, de conversa consigo mesmo. Ninguém alcançará a dor do outro, cada um sentirá a sua e, ainda que, mais de uma pessoa sinta a dor de uma mesma perda, ainda assim ela será diferente, de âmbito inatingível para o outro.  

 

Na literatura não são poucos os exemplos de personagens que passaram pela dilaceração da perda, afinal a literatura expressa de modo artístico a própria vida. O rapsodo Homero, na Ilíada, apresenta um Aquiles cruel, sangrento e sedento de glória até que Pátroclo, seu melhor amigo, é mortalmente ferido por Heitor. A dor de Aquiles foi calada e urdida na vingança até que fossem realizadas as pompas fúnebres de Pátroclo. Um dia após a pira consumir o corpo de seu companheiro, Aquiles transformou-se no mais voraz guerreiro que a região do Bósforo conhecera. Foi para o campo de batalha e matou Heitor e não se contentou com isso, pois amarrara o corpo ao cavalo e o arrastara, por alguns dias, diante da muralha de Tróia. Era sua forma de dizer aos troianos a dor que sentia, a perda que tivera.

 

A primeira cena do livro Menino de Engenho*, de José Lins do Rego, lança-nos num drama de amor, sangue e desalento, vivido por Carlos:

 

Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu. Dormia no meu quarto, quando pela manhã acordei com um enorme barulho na casa toda (p.03).

 

O menino vai ao quarto dos pais e assiste a uma cena incompreensível: a mãe estendida no chão, banhada de sangue e o pai debruçado sobre ela, incrédulo de como sua própria loucura o levara a cometer tal crime. Aquela família, aparentemente perfeita, desintegrara-se, o menino não conseguia compreender tudo o que ali acontecera: a mãe morta; o pai, um assassino internado num hospício. O sentido da perda acompanhará Carlos por toda vida:

 

A morte de minha mãe me encheu a vida inteira de uma melancolia desesperada (p.07).

 

Outra obra, nem sempre tão famosa é o livro O meu pé de laranja lima**, de José Mauro de Vasconcelos. A personagem narradora da história é Zezé, um menino de seis anos, muito levado, mas observador dos sentimentos humanos e da vida. Filho de uma família numerosa, cheia de dificuldades econômicas, Zezé torna-se para a família uma válvula de escape para suas frustrações, por isso, quase sempre o menino é injustamente castigado.

 

A fantasia era uma das maneiras de Zezé atravessar o cotidiano familiar de opressão, por isso, desabafava com seu pé de laranja lima, lá nos fundos do quintal. Certa vez, conhece um português, que se transforma num grande amigo, o Portuga, numa espécie de pai afetivo que até então ele não reconhecera em seu pai biológico. O capítulo sexto da obra apresenta este trecho da conversa entre o menino e seu amigo Portuga:

 

_ Tudo que é sonho meu, Portuga, eu boto você. Quando saio pelas verdes campinas com Tom Mix e Fred Thompson (...) Você está em todo canto que eu vou. De vez em quando, na aula, eu olho pra porta e penso que você chega lá e me dá adeus...

_ Santo Deus! Nunca vi uma alminha tão sedenta de ternura como tu. Mas não devias te apegar tanto a mim, sabes?... (p.163)  

  

O Portuga conseguiu entender aquilo que era óbvio, mas que a família do menino não entendia: ele era um menino normal, criativo, arteiro, saudável e muito carente de afeto. A amizade entre eles tornou-se um forte laço, familiar, mas sem que a própria família soubesse. Até que um dia, na escola, Zezé viu um colega entrar correndo pela sala de aula e disse que o Mangaratiba (trem-de-ferro) esmigalhou o carro do Português. Ao ouvir isso, o menino conta:

 

Fui me levantando sem sentir. Aquela vontade de vomitar me atacando enquanto o corpo estava molhado de suor frio. Saí da carteira e nem reparei direito no rosto de Dona Célia Paim que viera ao meu encontro espantada talvez com minha palidez.

_ O que foi, Zezé?

Mas não podia responder. Meus olhos começavam a se encher de lágrimas. Então me deu a loucura enorme, comecei a correr... (p.170-171)

 

A tragédia se confirmara, o Portuga morreu e Zezé nem pode vê-lo. Instalou-se no menino um clima de perplexidade e solidão:

 

Vomitei mais duas vezes e pude ver que ninguém mais se incomodava comigo. Que não havia mais ninguém na vida. (p.171)

 

A dor da perda traz a blasfêmia, o desabafo de Zezé:

 

_ Você é malvado, Menino Jesus. Eu que pensei que você ia nascer Deus essa vez e você faz isso comigo? Por que não gosta de mim como dos outros meninos? Eu fiquei bonzinho. Não briguei mais, estudei as lições, deixei de falar palavrão. Nem bunda mais eu falava. Por que você fez isso comigo, Menino Jesus? (p.172)

 

Quando a dor é grande, as perguntas afloram. Um misto de revolta dolorosa se instala no ser humano, depois vem a prostração, como aconteceu com Zezé:

 

Durante três dias e três noites, fiquei sem querer nada. Só a febre me devorando e o vômito que me atacava quando tentavam me dar coisa para comer ou beber. Ia definhando, definhando. Ficava de olhos espiando a parede sem me mexer horas e horas.

Ouvia o que falavam a meu redor. Entendia tudo, mas não queria responder. Não queria falar. Só pensava em ir para o céu (p.173). 

 

E o menino descobriu a dor:

 

Agora sabia mesmo o que era a dor. Dor não era apanhar de desmaiar. Não era cortar o pé com caco de vidro e levar pontos na farmácia. Dor era aquilo, que doía o coração todinho, que a gente tinha que morrer com ela, sem poder contar pra ninguém o segredo. Dor que dava desânimo nos braços, na cabeça, até na vontade de virar a cabeça no travesseiro. (p.174) 

 

Mas a dor humana só pode ser aplacada com o próprio ser humano que não nos deixa permanecer por muito tempo naquele estado. A vida é urgente, impele-nos para ela, ainda que por alguns períodos desacreditemos em sua  beleza. A dor da perda dá-nos a dimensão de nossa fragilidade, da precariedade de nosso corpo em contraponto à eternidade de nossa alma.

 

 

 

* Menino de engenho, de José Lins do Rego. Editora José Olympio, 1966.

 

**  O meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos. Editora Melhoramentos, 2000.


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.