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CHAPEUZINHO JÁ NÃO É MAIS A MESMA...

O conceito de infância atual é bastante recente. Não faz muito tempo a criança ainda era vista como adulto em miniatura, não havia a compreensão de que ela é um ser em formação e que, portanto, necessita de entrar em contato com temáticas, questões que estejam de acordo com sua fase de compreensão, de entendimento.

 

Houve época que era consensual a criança trabalhar como adulto, sem frequentar escolas, por exemplo. Nas imagens de crianças (ilustrações ou fotos) do final do século XIX e início do século XX é possível constatar as posturas e vestuários das crianças similares a dos adultos.

 

Embora não se conceba mais a criança como no passado, ainda hoje, em algumas sociedades, persiste o tratamento à infância que se assemelha ao dado às crianças do passado, tanto em relação ao trabalho quanto ao vestuário, tratando-as como miniaturas de adultos.

 

Se as mudanças em conceito e participação das crianças no meio social mudaram, o mesmo aconteceu com as histórias destinadas a elas, em especial as histórias tradicionais, os contos folclóricos chamados de Contos de Fadas.

 

A bela adormecida, O gato de botas, Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Os músicos de Brêmen, Rapunzel, entre outros Contos de Fadas advêm da tradição oral, foram transmitidos de boca em boca, de geração em geração pelas famílias até que, a partir do século XVII, foram publicados pelo francês Charles Perrault e, posteriormente no século XIX, pelos alemães conhecidos como irmãos Grimm. Esses autores coletaram as histórias ouvidas em seus países e publicaram-nas.

 

Há uma expressão que diz “quem conta um conto, aumenta um ponto”, pois foi e tem sido assim com os Contos de fadas em cada época de nossa trajetória, uma vez que recebem influência do meio em que estão inseridos. As histórias sofrem mudanças, inclusive no formato de sua veiculação: livro, filme, jogos etc. Se existem mudanças no suporte de apresentação das histórias, também existirão adaptações no enredo das histórias, adequação a cada época, a cada veículo tecnológico. 

 

O universo dos contos de fadas orbita entorno de castelos com reis e rainhas, bruxas, príncipes e princesas, madrastas, órfãos etc.; numa constante luta entre o bem e o mal recheada com dilemas existenciais como: vida e morte; o medo da perda dos pais; bondade e maldade, juventude e velhice, o bobo e o esperto, entre outros. São dilemas que estão presentes na vida humana, simbolicamente representados de modo que a criança consegue se divertir e, ao mesmo, tempo compreender a si e ao mundo que a rodeia:

 

Enquanto diverte a criança, o conto de fadas a esclarece sobre si mesma, e favorece o desenvolvimento de sua personalidade. Oferece significado em tantos níveis diferentes, e enriquece a existência da criança de tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à multidão e diversidade de contribuições que esses contos dão à vida (BETTELHEIM, 1985, p.20)

 

Para Bettelheim, os contos de fadas não escondem as dificuldades da vida, mas apresentam-nas com a estrutura narrativa que as crianças são capazes de compreender:

 

Para dominar os problemas psicológicos do crescimento - superar decepções narcisistas, dilemas edípicos, rivalidades fraternas, ser capaz de abandonar dependências infantis; obter sentimento de individualidade e de autovalorização, e um sentido de obrigação moral - a criança necessita entender o que está se passando dentro de seu eu inconsciente [...] a forma e a estrutura dos contos de fadas sugerem imagens à criança com as quais ela pode estruturar seus devaneios e com eles dar melhor direção à sua vida (p.16)

 

Os contos de fadas não evitam os problemas, as dificuldades da vida e tudo isso faz com que a criança amadureça psicologicamente, mas isso tem sido modificado em algumas versões atuais de alguns desses contos de fadas, como é o caso de Chapeuzinho Vermelho.

 

Na história tradicional, o Lobo engana Chapeuzinho e chega antes à casa da vovó para devorá-la. Disfarça-se com as roupas da velhinha e prepara-se para encher mais a pança com a neta, a Chapeuzinho. O plano não ocorre como o lobo previa, pois o caçador ouve os gritos da menina, entra na casa, mata o lobo e retira a vovó com vida de sua pança. Então vovó e Chapeuzinho ficam juntas e felizes ao se livrarem do cruel Lobo.

 

Atualmente há adaptações de Chapeuzinho Vermelho que não falam da morte: a vovó é presa num armário e, no final, o lobo não é morto. Enfim, há recusa em apresentar os dissabores da vida, é uma suavização da história que desvirtua o fio condutor da narrativa e retira da criança a chance de ser confrontada com a força que o bem (Chapéu) e o mal (Lobo) têm numa história que encanta e forma crianças há gerações. Para Bettelheim (1985, p.14-15)

 

As estórias modernas escritas para crianças evitam esses problemas existenciais, embora eles sejam questões cruciais para todos nós. A criança necessita muito particularmente que lhe sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre a forma como ela pode lidar com estas questões e crescer a salvo para a maturidade. As estórias “fora de perigo” não mencionam nem a morte nem o envelhecimento, os limites de nossa existência, nem o desejo pela vida eterna.  O conto de fadas, em contraste, confronta a criança honestamente com os predicamentos humanos básicos. 

 

As histórias são vivas e recebem a influência das sociedades e das épocas, mas é preciso refletir se histórias que há tanto séculos têm auxiliado a formação das crianças e contribuído para o seu amadurecimento psicológico, não estão enfraquecendo sua força narrativa com as alterações, distorções em sua essência, nos conflitos principais, pois isso poderá gerar perda para todos, em especial, à infância.   

 

Obras consultadas:

 

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

 

SILVA; Rovilson José da; BORTOLIN, Sueli. As diferentes cores de chapeuzinho in. REZENDE, Lucinea (Org.) Leitura Infantojuvenil: abordagens teórico-práticas. Londrina: EDUEL, 2011.


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.