LEITURAS E LEITORES


MANUEL BANDEIRA E O GUIA DE OURO PRETO

O gênero literário constitui-se por diferentes matizes e há aqueles que são mais conhecidos, por exemplo, o romance, o conto e a poesia. Há aqueles que são menos conhecidos e que, muitas vezes, são confundidos entre informação, visão pessoal, reflexão, como é o caso da Literatura de Viagem.

No Brasil, a escrita intitulada literatura de viagem trata, predominantemente, de viajantes europeus que aportaram por aqui nos séculos XVI, XVII e XVIII para explorar, estudar ou se aventurar. Esses viajantes não tinham a escrita literária em primeiro plano, pois a intenção era informar.

Ainda se discute o quanto desses textos é literatura, ou que priorize a arte literária, a estética, pois muitos deles têm cunho informativo, embora mantenham composição estilística e reflexões próprias de cada narrador, o que confere singularidade ao texto, indo além de descrever a fauna e a flora nacionais. 

Há que se ampliar o olhar para se compreender esse filão da literatura. No Brasil, em geral, foi ligada ao quinhentismo brasileiro (XVI), a começar pela Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal e, depois em séculos posteriores XVII e XVIII, com demais cronistas e viajantes europeus (cientistas, botânicos, geólogos, descobridores de terra) que vinham aqui e descreviam o país, como se fosse uma pintura, um desenho do que se viu no lugar, de seus hábitos, costumes e crenças. Nada tão distinto do que se faz hoje nas redes sociais com postagens mediadas pelo texto oral ou escrito.

O início do século XX, década de 1930, na gestão do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), Rodrigo Melo Franco de Andrade convida Manuel Bandeira a escrever o Guia de Ouro Preto. (CORREIA, 2018).

Mais tarde, no século XX, há brasileiros escrevendo guias sobre o Brasil que estavam no âmbito da literatura de viagem, embora não pudessem ser simplesmente assim denominados, pois apresentavam perspectiva histórica, mas também estética, como é o caso do guia escrito por Manuel Bandeira.

Manuel Bandeira (1886, Recife -1968, RJ), conhecido por sua obra poética de lirismo inconfundível, versos que vão de aspectos mais tradicionais em termos de metrificação e composição até proximidade com a vertente do segundo período do modernismo brasileiro. Importa destacar que poeta da expressão artística de Bandeira não cabe simplesmente numa única vertente, pois suas composições transitam pelo mundo da escrita poética, ecoando em reflexão individual ou social, lirismo, graça e melancolia.   

Bandeira também publicou o Guia de Outro Preto em 1938, a exemplo de contemporâneos seus como Gilberto Freyre que publicou os guias de Recife (Guia Prático, Histórico e Sentimental da cidade do Recife, 1934) e depois de Olinda (Olinda: 2º guia prático, histórico e sentimental de cidade brasileira, 1939), posteriormente Jorge Amado (Bahia de Todos os Santos - Guia 1944/1945). Naquele período, final dos anos 30 e pós–guerra, houve a publicação desses guias, que podem ser reverberações do trabalho de Rodrigo Melo Franco de Andrade no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).

O Guia de Ouro Preto, escrito por Manuel Bandeira, traz na abertura o soneto que inicia com o percurso histórico da cidade, uma epígrafe da pujança, glória e decadência da cidade, passando pelos nomes...

Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada

Ribeirão trepidante e de cada recosto

De montanha o metal rolou na cascalhada

Para o fausto d´El- Rei, para a glória do imposto.

[...]

Que resta do esplendor de outrora? Quase nada:

Pedras ...templos que são fantasmas ao sol-posto

[...]    

 Manuel Bandeira

 

Emblematicamente o poema fecha com aquilo que resplandece a cidade, a arte de Aleijadinho:

E avulta, apenas, quando a noite de mansinho

Vem, na pedra-sabão lavrada como renda,

- Sombra descomunal, a mão de Aleijadinho!

 

A partir de então, após nota do autor e agradecimentos à Diretoria de Patrimônio Público da época, a seus assistentes por acesso ao material que  o poeta utilizou para conferir informações históricas, a obra apresenta o percurso do Guia que está subdividido em 10 seções:

- História

- Impressões de viajantes estrangeiros

- Ouro Preto, a cidade que não mudou

- As duas grandes sombras de Vila Rica

- Passeio a pé no centro

- Passeios de automóvel

- Monumentos religiosos

- Viagem para Ouro Preto

- Várias Informações  

No passeio pela história de Outro Preto e região, é possível constatar o cuidado do poeta em consultar obras, fontes históricas para situar o leitor naquele universo do século XVIII, do arraial à Vila Rica, com a chegada à futura cidade dos paulistas, ditos por Bandeira, ancorado por texto de Antonil,  como os primeiros devassadores da região, da então Vila Rica, antigo nome da futura cidade:

Os anos de 1707 a 1709 foram de grande tumulto no distrito das minas. Os paulistas, primeiros devassadores da região, consideravam grande injustiça concederem-se terras e minas aos forasteiros portugueses, a que os paulistas alcunharam de emboadas (de mbuab, voz indígena que designava as aves com penas nos pés, porque os reinóis usavam calças compridas ou polainas [...]) e brasileiros do Norte, envolvidos no apelativo geral de baianos. (2000, p.18)  

As construções da Vila Rica eram “Cochicholos, tristes, fechados por quatro paredes de dois a três metros de altura, com uma só porta na frente, nem sempre, uma estreita janela pregada á trave do teto, sem ar, sem luz...” (p.2000, p.18) o que em nada lembra a pujança arquitetônica da Ouro Preto de hoje.

Cidade que se construiu na riqueza mineral da natureza e que também foi pródiga na violência, esquartejamento, revoltas, exposição de cabeças, antes mesmo de Tiradentes, que foi uma das cabeças mais famosas expostas em praça pública de Outro Preto.

Outro aspecto que até hoje ressoa pela arquitetura da cidade é o religioso, representado pelas dezenas de igrejas e o entorno arquitetônico e artístico que se manifesta em esculturas, entalhes, pinturas, dentro do contexto nacional, de construção de uma identidade nacional.

Bandeira contrapõe reflexão acerca de escrito da época, em que o escritor Simão Ferreira superestima a personagem (um anjo) de uma procissão do Triunfo Eucarístico descrevendo-a: “Cingia-lhe a cabeça um precioso toucado de flores e diamantes ...finíssimas plumas...o peito bordado de ouro e pedrarias...” ao dizer de um anjo da procissão. E o autor continua reafirmando a riqueza, a beleza e o “vagaroso empenho da vista, continuada novidade dos olhos, agitada esfera de riqueza, móvel aparato de magnificência”... (2000, p.20-21) . E Bandeira discorda das descrições de Simão:

Esta cerimônia de singular grandeza, mesmo descontadas as prováveis mentiras do autor Triunfo Eucarístico, erraria muito quem a imaginasse agora no quadro de uma Vila que fosse a Ouro Preto de hoje [...]. Na realidade o quadro era outro e bem pobre. A taipa e o pau-a-pique ainda não haviam cedido lugar ao belo quartzito do Itacolomi [...](p.21)

Bandeira, não apenas reproduz, mas dialoga com o passado escrito, pois o poeta revisita a história, transpondo o olhar da colônia para o império até chegar à Ouro Preto republicana.

O olhar eurocêntrico de Saint-Hilaire a respeito de Outro Preto diminui a importância da arquitetura cidade. Por exemplo, o Palácio dos Governadores foi descrito pelo francês como “pretenso palácio” e “massa de edificações pesadíssimas e de mau gosto”. Bandeira contrapôs:

Pode ser que eu esteja errado, mas o mau gosto me parece que é do francês. O caráter do palácio convinha até muito bem a uma construção destinada a servir de residência fortificada, e daí o seu aspecto de castelo-forte. (2008, p.35).  

Para Bandeira, “os viajantes estrangeiros são quase sempre insensíveis aos elementos mais profundos ou mais sutis dos costumes e do sentimento artístico dos países que visitam.” Adiante, expôs as críticas de Burton ao trabalho de Aleijadinho na frontaria da Igreja de São Francisco, principalmente porque o artista brasileiro tinha convertido duas colunas jônicas em pilastras, fato impensável para a concepção eurocêntrica de mundo. A isso, Bandeira classificou de “bobagens” o que Burton disse, pois o europeu era “completamente inconsciente da grandeza criadora” do artista ouro-pretano. (2008, p.35).

Viajar com Manuel Bandeira por Outro Preto provoca encontros com o passado da cidade, do país e de cada brasileiro, pois leva o leitor a transitar entre fatos históricos, aspectos geográficos e reflexões tecidas pela escrita do poeta.

Consultas:

BANDEIRA, Manuel. Guia de Outro Preto. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008.

CORREIA, Éverton Barbosa. Guia de Ouro Preto e os poemas ouro-pretanos de Bandeira. Signótica, Goiânia, v. 30, n. 1, p. 29-51, jan./mar. 2018.


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.