FALTA
O cotidiano mais banal
corrói meus pensamentos nesses tempos:
falta a rua,
o respirar sem máscaras,
usar o elevador sem preocupação,
tocar a maçaneta num gesto irresponsável.
Aproximar das pessoas conhecidas e
das desconhecidas.
Cumprimentar sem precaução.
Ficar ao sol o quanto quiser!
Sentir o vento.
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Falta o outro e sua narrativa:
Papos banais,
sérios,
papos engraçados,
conversa fiada da boa!
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Nesses tempos,
Fazem-me companhia
O Graciliano e suas Memórias do Cárcere:
estamos juntos na prisão.
Vejo-me, assim como ele,
Restrito à minha cela/casa:
Tempos difíceis o dele.
Mais amenos pra mim?
Talvez, meu implacável Graciliano,
haja semelhança política em nossos tempos...
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A ausência me lembrou que
Gullar já me traduziu, em outra época:
“Uma parte de mim
é todo mundo...”
Não consigo viver sem o outro ser humano.
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Leminski me traz à lucidez:
“o silêncio
se mete a me maltratar
me ditando
abreviaturas de mim
e,
quem sabe,
a mim mesmo me dilatando”
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Quando o isolamento acabar,
assim como a Hilst,
“[...] acenderei luzes na minha porta e falaremos só o necessário.”
E
“...segredarei em teus ouvidos
os meus tormentos...”
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Não fossem vocês,
companheiros de narrativa,
a quarentena seria insuportável.
Evoé Graciliano Ramos!
Evoé Paulo Leminski!
Evoé Hilda Hilst!
Obras consultadas:
Graciliano Ramos - Memórias do Cárcere
Ferreira Gullar – poema Traduzir-se
Paulo Leminski – Toda Poesia
Hilda Hilst - Baladas