BIBLIOTECA ESCOLAR


  • Discussões, debates e reflexões sobre aspectos gerais e específicos da Biblioteca Escolar.

SER “DE PAZ”

Há poucos dias, discutia com um grupo de pessoas a índole do brasileiro, que é “de paz”. Com poucas exceções e em raros momentos, nada parece abalá-lo ou indigná-lo, por mais que a vida lhe seja cruel ou que o espolie daquilo a que tem direito. Às vezes, ele até tem consciência dos fatos, mas não toma iniciativa no sentido de lutar contra eles.

 

Sabemos que o aspecto político dos fatos interfere em medidas diferentes naquilo que diz respeito à vida pública e/ou, até mesmo, à vida privada. Sabemos também que, no sistema capitalista, pode mais quem tem mais e pode menos quem tem menos. Trocada em miúdos, essa afirmação quer dizer que, sem a preocupação com estamentos sociais mais específicos, o povo pode ser, em geral, definido entre “poderosos” (aqueles que, de certa forma, detêm algum tipo de poder: financeiro, político, formação de opinião, etc.) e os sem poder, os “de paz”, que se acomodam, abaixam a cabeça, e/ou são manipulados; mas que, no fim, “pagam a conta”.

 

Os “poderosos” se cuidam, por conta própria e por seus próprios meios. Os “sem poder” dependem sempre de eventuais Robin Hood, daqueles que falem, que gritem e que lutem por eles.

 

No momento em que se põe em cheque a educação, em nosso país, tendo em vista os resultados que estão sendo divulgados (porque já não dá mais para escondê-los em baixo do tapete), o grupo dos “poderosos”, de acordo com os valores em que acreditam, já selecionaram e buscaram os melhores colégios da rede particular de ensino e matricularam seus filhos, muito acertadamente, como medida de defesa e de opinião coerente; lá estão as melhores instalações físicas, os melhores especialistas, os melhores e mais bem pagos professores, os melhores laboratórios, os melhores recursos pedagógicos e as melhores bibliotecas. Tudo isso faz parte de um elenco que define o marketing institucional e define, também, a afluência de clientela, pelo lado e pelos interesses legítimos dos empresários da educação.

 

Os “sem poder”, isto é, aqueles desprovidos de vez e de voz, para quem a ascensão em termos educacionais significaria também a ascensão social, financeira, etc., continuam na situação de eternos “sem poder”. Quando a situação econômica do país dá uma melhorada, eles – os “sem poder”- se alimentam um pouco melhor, moram um pouco (só um pouco) melhor e se vestem um pouco melhor. Mas, continuam inseridos num sistema de ensino público de baixa/baixíssima qualidade, sem que tenham outra opção ou briguem por tê-la.

 

Por formação, por área de conhecimento e de atuação, estou envolvida com o universo da biblioteca. Como só Deus é perfeito, sabemos que a biblioteca da rede particular de ensino também tem suas falhas e fragilidades; mas, infinitamente menores do que as da rede pública. É aquela velha questão: eu pago, eu quero, eu exijo; ou: não pago, não posso exigir e nem posso querer.

 

Só que esse é um engodo. Não pago?! Como é essa história?! Posso não pagar diretamente num guichê, a alguém com a função de caixa. Mas, tudo que eu consumo, exatamente tudo, tem algum tipo de imposto embutido, além do imposto de renda que todos pagam, muitas vezes descontado na folha de pagamento dos assalariados, diferentemente do grupo dos aqui chamados “poderosos”.

 

Se nos restringirmos ao estado de São Paulo, podemos dizer que a situação dos “sem poder”, em relação aos dispositivos extra-sala de aula, é bastante precária (veja todos os artigos e reportagens que têm saído na mídia, em tempos recentes). Não só precária, mas acompanhada de traços de irresponsabilidade cruel, por parte de quem exerce a autoridade política e, como tal, tem poder de decisão no que tange as políticas públicas pertinentes.

 

Se, indiretamente, mesmo os “não poderosos” pagam a conta, por meio dos impostos embutidos, se eles são parte integrante do povo-cidadão (que, inclusive, vota e guinda determinadas pessoas a determinados cargos e funções), por que ou qual a causa de alijá-los de um ensino de qualidade? Sinto-me muito a vontade para fazer esse tipo de questionamento porque, na minha infância, tive a oportunidade de estudar em escola pública, de altíssima qualidade, a Escola Caetano de Campos (a famosa Escola da Praça), que oferecia o melhor ensino, com aparatos pedagógicos de excelência para a época, não importava a quem – “poderosos” e “sem poder”, num convívio saudável, e o resultado era sempre o melhor.

 

No estado de São Paulo, a questão está muito clara. Há colégios de primeira linha, só ou quase exclusivos para aqueles que podem garanti-los para seus filhos. E os demais? As mencionadas matérias da mídia (impressa, falada, televisiva ou eletrônica) estão registrando o descaso das autoridades pelo futuro do menino ou da menina do centro, dos bairros ou dos subúrbios das nossas cidades, a quem é negado, no ensino público, o equipamento e os profissionais que provêem o acesso a conhecimentos complementares à sala de aula, que poderiam possibilitar a esses jovens um futuro mais promissor do que tem sido até agora.

 

Só falar em leitura e livro, num discurso cheio de boas intenções, mas vazio de concretude e eficácia das ações, não opera milagres nem tapa os olhos de todos; apenas de alguns, menos avisados ou mais “de paz”, enquanto as autoridades públicas constituídas continuam ditando os destinos – até certo ponto cruéis – dos “sem poder”, tão cidadãos quanto os demais. (MHTCB)


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MARILUCIA BERNARDI

Formada pela PUCCampinas. Atualmente elabora projetos para formação de Biblioteca Particular (Pessoal), oferece apoio a Bibliotecas Escolares e é aluna da Faculdade da Terceira Idade, da UNIVAP, em Campos do Jordão. Ministrou aulas de Literatura e Comunicação, por dois anos, na Faculdade da Terceira Idade. Atuou na Escola Estadual Prof. Theodoro Corrêa Cintra, em Campos do Jordão, pela ONG AMECampos do Jordão. Trabalhou na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo; na Metal Leve; chefiou a Biblioteca da Faculdade Anhembi-Morumbi e foi encarregada da biblioteca do Colégio Santa Maria. Possui textos publicados e ministrou diversas palestras sobre Biblioteca Escolar.?

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MARIA HELENA T. C. BARROS

Livre-docente em Disseminação da Informação (UNESP); Doutora em Ciências da Comunicação (USP); Mestre em Biblioteconomia (PUCCAMP); Especialista em Ação Cultural (USP); Formada em Biblioteconomia e Cultura Geral (Fac. Filosofia Sedes Sapientiae); Autora de livros e artigos científicos publicados no Brasil e no Exterior