LITERATURA INFANTOJUVENIL


AS COCADAS DE CORA CORALINA: UM CASO DE DESEJO X SUBMISSÃO

Marcia Batista

 

Ler Cora Coralina é saboroso. Sim, realmente. Sou suspeitíssima para fazer tal afirmação, pois estudei sua obra durante dois anos e não cansei (não canso) de lê-la, analisá-la e refletir sobre essa escritura. Comparo-a metaforicamente, a um fruto de vários nuances de sabores que brincam com o nosso paladar, indo do doce ao acre. Através de seus textos é possível conhecer um universo distinto e a poeta transpõe parte da própria vivência para sua obra: as relações familiares e particulares, juntamente com a memória são fatores imanentes no processo de criação, assim a concepção de mundo vem representada por meio da produção poética. Na obra de Cora Coralina tal característica é predominante. Na maioria de seus contos e poemas, recorre ao passado para focalizar as práticas sociais, juntamente com a representação das experiências pessoais, sem deixar o lirismo, mesmo quando estabelece suas críticas.

 

Para tanto, lança mão de histórias que são narradas com a simplicidade de uma “contadora de causos”, porém nelas é possível detectar um desagrado a todo o tipo de convencionalismo, principalmente àqueles de que fora testemunha. Sua memória desperta a imagem da infância difícil, a adolescência problemática, a família repressora, todas retratadas com um misto de dor e inconformismo com as regras sociais vigentes. Buscar pela memória também é uma forma de superar traumas através da catarse e, ao narrar um fato, seja por meio da fala ou da escrita, torna possível denunciar e criticar as injustiças sofridas.

 

Coralina enfatiza sua solidariedade à mulher como a demonstrar que a relação de alteridade já começava na infância, por isso em sua escritura é frequente a representação de um eu ficcional infantil e por meio das memórias compõe com um senso crítico apurado as limitações impostas ao sexo feminino – ora representado por uma menina, tratada com a leveza trazida pelo seu pensamento humanitário.

 

Entretanto, quando denuncia, a suavidade inerente à poeta cede lugar às experiências dolorosas, retratadas com uma acre ironia, iguais às que estão impressas no poema “A mana”, de Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha (1984), que sublinha as regras educacionais do passado:

 

‘Esta senhora sabe criar filhos...’

Isto se dizia quando da notícia de uma tunda de taca,

Dessas de precisar panos piedosos de salmoura, corretivos

de faltas infantis de que a criança não tinha consciência.

Humilhação maior, domínio sobre a criança, esta era não raro

Amarrada com fio de linha na perna da mesa, o sadismo, sobretudo, da mãe.

Não amarravam o menino traquinas, levado,

Dobravam a personalidade da criança. (1994, p. 102).

 

Esses versos deixam patentes as vantagens de um gênero sobre o outro: o tratamento diferenciado dispensado aos meninos, antecipando sua atuação na vida fora do espaço doméstico, ou seja, preparando-os para o topo desta ordem dos valores estabelecidos. “Assim o modo como eram criados os meninos davam-lhes condições de ingressar no mundo masculino do trabalho e da competição” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 58).

 

O poema ilustra outro hábito comum naquele momento histórico: na falta da mãe ou mesmo na impossibilidade desta, as responsabilidades domésticas ficavam a cargo de uma irmã mais velha:

 

A mãe cansada, esgotada de partos sucessivos, entremeados, não raro, de prematuros e hemorragias, delegava na filha mais velha sua autoridade materna. Esta assumia a responsabilidade de cuidar dos irmãos menores quase sempre autoritária e despótica com direitos de ásperas correções e castigos corporais (1994, p. 102).

 

A menina (futura mulher) exercita autoridade da mãe reduplicando as práticas sociais vigentes, tornando-se autoritária e cruel com os irmãos mais novos, muita das vezes superando os próprios pais. De certo modo, a menina preparava-se para assumir tal postura em sua futura família, conforme salienta Maria Lúcia Rocha Coutinho: “ao contrário dos homens, as mulheres foram ensinadas a ‘cuidar’ de todo mundo, menos delas mesmas, a serem guardiãs da tradição e dos laços de família” (1994, p.54.)

 

Ainda no tocante às tradições, no conto “As Cocadas”, de Tesouro da casa Velha (2001), continua presente a rigidez dos costumes, a obediência à custa de permanente ameaça de castigos, a supressão das vontades e, como resposta, o sentimento de revolta. Partindo de uma situação trivial, comum no passado, narra a história de uma menina que ajuda a prima na preparação de cocadas. Porém, no momento de ganhar a recompensa pelo trabalho - inúmeras cocadas - seu desejo frustra-se, pois a prima lhe oferece apenas dois doces que não satisfazem sua imensa necessidade.

 

Fato à primeira vista corriqueiro, mas que juntamente com toda minúcia na descrição dos detalhes abre espaço para reflexões a respeito das relações sociais, evidenciadas as atividades domésticas do passado, na austeridade das regras que coadunam com o sentimento de inferioridade da menina; denunciando os efeitos provindos das duras regras sociais decorrentes desta educação autoritária.

 

Gilberto Freyre destaca, em inúmeras passagens, o tratamento dispensado às mulheres e às crianças, consideradas seres inferiores, apontando toda ordem de descaso, como no relato que se segue ao registrar uma das causas da crescente mortalidade infantil no início do século XIX:

 

[...] alimentação desproporcional, insuficiente ou imprópria; desprezo no princípio das moléstias da primeira infância, apresentando-se ao médico crianças já moribundas de gastroenterites, hepatites e tubérculos mesentéricos (2003, p. 450).

 

Observa-se que negavam às crianças condições mínimas de sobrevivência; as que resistiam às doenças não sobreviviam aos maus-tratos do âmbito familiar. Ocupavam lugar na casa semelhante aos dos escravos: alimentavam-se quando permitido e não lhe reservavam um tratamento próprio para sua faixa etária, educavam-nas como adultos em miniatura. Em razão disso, acreditava-se que as crianças não precisavam de cuidados distintos, pois poderiam, como o adulto, viver a realidade sem fantasias.

 

O tratamento dispensado à menina era pior porque, na condição de criança, mas como futura mulher, era preparada desde a mais tenra idade para exercer o papel que a sociedade de formação patriarcal lhe apontara: cuidar da casa, manter os filhos e a família e principalmente saber refrear o desejo, uma vez que a vontade da mulher estava condicionada ao chefe da casa, portanto saber se conter era considerado uma virtude, como mostra Gilberto Freyre ao explicar sobre a educação das meninas:

 

À menina, a esta negou-se tudo que de leve parecesse independência. Até levantar os olhos na presença dos mais velhos. Tinha-se horror e castigava-se a beliscão menina respondona ou saliente; adoravam-se as acanhadas, de ar humilde (2003, p. 510).

 

Essa educação rígida e castradora evidenciada por Freyre, está presente no conto “As cocadas”, e essa representação da memória origina-se de uma narrativa dolorida e impregnada por uma revolta contida. A negação do doce traduz toda sorte de privações sentida pela personagem, seu desejo pelo doce, pois, torna-se tão premente; no entanto, isto também lhe é negado, impedindo qualquer possibilidade de realização.

 

A evocação da memória pelos sentidos é dominante nessa narrativa; as sensações tornam-se sua marca registrada. A visão, olfato e o tato compõem o desejo da menina e a recordação adquire maior ênfase graças à ilustração dada pelos detalhes, sendo possível compartilhar com a personagem cobiça, raiva e revolta pela privação do objeto almejado.

 

O desejo da menina pelas “... cocadas moreninhas de ponto brando atravessadas aqui e ali de paus de canelas...” (CORALINA, 2001, p. 85) parece ser uma fome que transcende a necessidade física: há uma vontade de sair do jugo que lhe era imposto, resistir às ordens e ainda fazer valer as próprias vontades. Coisa difícil naquele momento histórico, porque os desejos eram considerados reprováveis, próprios das mulheres vistas como indignas de respeito.

 

Primeiramente, através da visão da menina se tem a dimensão de todo o desejo sentido, por isso, ela avalia o coco “... era gordo, carnudo e leitoso...” (2001:85). E, movida pelo desejo, auxilia com eficiência para que a fruta se transforme no saboroso doce, inalando com prazer a deliciosa fragrância vinda dele.

 

Quando o doce estraga, ela emprega as sensações táteis para evidenciar sua vontade e mostrar, desse modo, que o desejo pelo doce permanece latente “guardadas ainda mornas e esquecidas, tinham se recoberto de uma penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor” (2001, p. 86).

 

Isto é elucidado na medida em que ela emprega adjetivos que sugerem certa naturalidade e não a repugnância comum quando se vê um alimento deteriorado, e os adjetivos “mornas, macia e aveludada de bolor” (2001, p. 86) mencionam a sensação tátil, como se a maciez do doce pudesse se espalhar por seu corpo.

 

No conto, predomina o sentido da visão. Através do olhar da menina percebe-se a tenra fruta e sua transformação em cocada. Esse olhar de cobiça estende-se ao imaginário quando a menina passa a aspirar àquilo que visualizou: De noite, sonhava com as cocadas. De dia as cocadas dançavam em pequenas piruetas na minha frente” (2001, p. 86) A visão permite o despertar de todos os sentidos da personagem: ela adivinha o sabor, a maciez e a doçura das cocadas. As emoções suscitadas pelas impressões podem perdurar por toda vida, como parece ser o caso do narradora-personagem deste conto: ela está narrando algo que aconteceu na infância, porém as impressões estão fortemente presentes em sua memória.

 

A sensação de perda experimentada pela menina no final do conto também é causada pelo olhar: olhar de perda e derrota ao ver o cachorro comer, sem vontade, as cocadas que tanto desejara. A menina e o cachorro pertencem à mesma condição, tal imagem ressalta a irracionalidade na aplicação rígida das regras sociais. Contraditoriamente, o cão encontrava-se em melhor situação, movido pelos instintos, não havia obstáculos para satisfazer seu desejo; a menina, pelo contrário, presa pelos laços das convenções sociais, limitou-se a olhar, tristemente, o seu objeto de desejo sendo consumido pelo cão. E conclui com revolta:

 

Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta – má e dolorida – de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro (2001, p. 86).

 

A revolta sentida pela menina transforma-se em dor, por não ter sido corajosa para expressar sua necessidade, deixando-se dominar pelo medo; a dor expressa pelos adjetivos “decidida, resoluta e malcriada, cínica” permite inferir o tratamento para quem quebrasse as regras sociais vigentes. Esses adjetivos remetem à ideia de como as pessoas consideravam a personagem, embora nem todos os vocábulos sejam negativos, tais como “decidida e resoluta”. Numa sociedade de educação rígida, as futuras mulheres portadoras dessas qualidades não eram bem aceitas, o que torna os adjetivos citados em verdadeiros insultos.

 

O autoritarismo sobre mulheres e crianças é marcante: varia desde a falta de autonomia até agressão física e moral. No conto, a narradora-personagem traz sentimentos mal resolvidos do passado, as feridas estão presentes em cada ponto narrativo como se, ao sabor das reminiscências, as cascas começassem a cair, restando o arrependimento de ter sido acomodada no passado. Já no presente deixa sobressair através da escrita – como que rompendo a casca do medo e da apatia – as mazelas do passado. Devido a isso, há certa necessidade em criticar os hábitos rígidos de educação, com isso, o desrespeito à criança - principalmente a do sexo feminino - é posto em evidência.

 

Seguindo ainda esse percurso da memória e dos sentidos, o poema “O Prato Azul-Pombinho” (que foi tão bem lembrado por Sueli Bortolin) apresenta um objeto estimado pela família, considerado uma verdadeira relíquia, e por meio dele reconstitui-se o passado. O eu lírico, representado por uma menina, é acusada de quebrar a preciosa louça, fato que causa comoção em toda a família e foi o bastante para ser apontada, acusada e castigada.

 

[...] Chorei mais alto, na maior tristeza,

comprometendo qualquer tentativa de defesa.

De nada valeu minha fraca negativa.

Fez-se o levantamento de minha vida pregressa

de menina

e a revisão de uns tantos processos arquivados.

Tinha já quebrado - em tempos alternados,

três pratos, uma compoteira de estimação,

uma tigela, vários pires e a tampa de uma terrina.

 

Meus antecedentes, até,

não eram muito bons.

Com relação a coisas quebradas

nada me abonava.

E o processo se fez, pois, à revelia da ré,

e com esta agravante:

tinha colado no meu ser magricela, de menina,

vários vocativos

adesivos, pejorativos:

inzoneira, buliçosa e malina.

Por indução e conclusão,

era eu mesma que tinha quebrado o prato azul-pombinho.

 

Por tal fato sofre todas sanções previstas para as meninas desajeitadas da época o que serve como um pretexto para recompor um manancial de práticas e valores de uma época.

 

O conto e o poema trazem um eu lírico que se reporta à infância, estabelecendo uma relação entre o desenvolvimento infantil e os sentidos. Cora Coralina encarna um sujeito enunciador, ambos situados na infância para revelar um período da vida marcado por toda sorte de privações. Sob esta perspectiva, os sentidos servem para aumentar a dramaticidade dos conflitos, pois o sujeito lírico não consegue satisfazer seus desejos, exemplificado pelo conto “As Cocadas”, ou mesmo o eu enunciador do poema “O Prato Azul- Pombinho” porque o objeto que lhe trouxe tantas alegrias – pela satisfação dos sentidos – vem a ser o mesmo que vai ser motivo de sua humilhação, uma vez que tem que conservar seus cacos no pescoço como marca da desobediência. O exercício da autoridade adulta, a fim de reprimir qualquer manifestação espontânea, descreve um contexto opressivo, que revela a dimensão de todo despotismo social sustentado pela família, o qual Cora Coralina faz questão de ilustrar detalhadamente, a fim de deixar claro sua rejeição a tais normas.

 

Sugestões de Leitura

 

CORALINA, Cora. O prato azul-pombinho. 3.ed. São Paulo: Global, 2002.

 

______. As cocadas. In: O tesouro da casa velha. 4. ed. São Paulo: Global, 2001.

 

______. Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. 2. ed. UFG: Goiânia, 1984.

 

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sobre o regime da economia patriarcal. 47. ed. São Paulo: Global, 2003.

 

ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: a mulher nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

 

 

Marcia Batista - coordenadora do Projeto Palavras Andantes  - Londrina.

 


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SUELI BORTOLIN

Doutora e Mestre em Ciência da Informação pela UNESP/ Marília. Professora do Departamento de Ciências da Informação do CECA/UEL - Ex-Presidente e Ex-Secretária da ONG Mundoquelê.