LITERATURA INFANTOJUVENIL


TRAÇOS, CHEIROS E SONS QUE TRAZEM MEMÓRIAS DA INFÂNCIA

O traço artístico desde a infância me atraia a atenção, talvez porque sempre estive rodeada de alguma arte (aqui incluo os espetáculos de circo dos meus primos que pagávamos a entrada com doces).

Sempre observei minha tia Augusta, irmã caçula da minha mãe, quando pintava telas. Eu ficava admirada com a capacidade dela, lembro de paisagens verdes ganhando vida e flores em cores vibrantes. Não esqueço do cheiro que exalava das bisnagas de tinta. Um dia ela estava pintando no quintal e começou a chover, na pressa, e com vontade de ajudá-la, quebrei um vidro do óleo secante. Levei uma bronca e tive que largar a brincadeira para comprar outro vidro; o cheiro e minha “arte” foram inesquecíveis. Isso me faz lembrar de Alberto Manguel quando sua tia lhe apresentou uma tela e ele embebecido disse: “aquelas imagens se mantinham isoladas, desafiadoras, me aliciando para uma leitura. [...] Nunca esqueci.” (MANGUEL, 2001, p. 20).

Não esqueço também da primeira rendeira que eu conheci, era uma baiana (talvez nem fosse, mas diziam que era). Era bem idosa e morava no “Abrigo Gilda Marconi” em Londrina, abrigo que minha mãe estava ajudando a construir, então não saíamos de lá. Ficava imaginando se a família um dia viria buscá-la, enquanto isso não acontecia, eu observava a toalha de renda que ia crescendo com uma agilidade impressionante na almofada com alfinetes, linhas e bilros (1).

 

 

Lembro perfeitamente que os bilros faziam um barulho tão ritmado como se fosse uma música. Eles me inebriavam tanto que, depois de adulta, quando estive em Raposa (interior do Maranhão) pedi para uma senhora mostrar como fazia suas rendas. Fechei os olhos e revivi, com emoção, parte da minha infância.

Está também na minha memória os meus primeiros livros que eram japoneses. Eu tinha apenas seis anos, naquela época ainda não estava alfabetizada, portanto não lia em português muito menos em japonês. Então eu ficava horas e horas lendo imagem, imaginando o que estava escrito. Tinha um que era especial, gostava muito dele e pedia para os meus pais lerem para mim. Eles liam e eu achava muito estranho eles lerem sem saber a escrita japonesa. Hoje sei que eles liam a sequência de imagem. Acho que é daí que vem minha paixão por livros sem palavras os também chamados de narrativa visual.

Depois de muitos anos ganhei um exemplar desse livro. A história que eu mais gostava, tinha apenas quatro imagens e se tratava Tartaruga e a Lebre.

 

 

 

 
 
 

Com tantas lembranças reunidas, fecho a Coluna desse mês com um apelo (palavra forte!!!), deem às crianças espaço para que tenham contato com: traços, cheiros, sons, muitos livros (inclua os sem palavras, pois diferente do que muitas pessoas pensam, os traços são textos).

Não esqueça também de levá-las para conhecer muitas culturas e muitas gentes.

Sugestões de leitura:

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

RAPOSA: dos bilros às fronhas maranhenses. Disponível em: https://www.matraqueando.com.br/raposa-dos-bilros-as-fronhas-maranheses. Acesso em: 29 out. 2020.

NOTA

[1]Lembrava que a baiana chamava essas madeirinhas de birros, mas quis conferir e descobri que: “Os materiais usados para a manufatura da renda de bilro são simples: almofada, bilros, espinhos ou alfinetes, tesoura e o pique. A almofada serve de base para a confecção da renda. Os bilros (bilos ou birros, como muitas rendeiras dizem) são pequenas peças de madeira, que variam em formato e tamanho.” (grifo meu). (RENDEIRAS..., 2013).


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SUELI BORTOLIN

Doutora e Mestre em Ciência da Informação pela UNESP/ Marília. Professora do Departamento de Ciências da Informação do CECA/UEL - Ex-Presidente e Ex-Secretária da ONG Mundoquelê.