LITERATURA INFANTOJUVENIL


PERSONAGEM CRIANÇA NA LITERATURA DE CORDEL

Agradeço algumas pessoas:

Professor Alcides Carvalho, pela doação do seu rico acervo de Cordel para a biblioteca da UEL.

Bibliotecária Izabel Maria de Aguiar, protetora desse acervo desde 1997 e suas equipes.

Professora Raimunda de Brito Batista, pela coordenação dos projetos de pesquisa sobre o acervo de Literatura de Cordel da UEL desde 2003.

Cordelista Josué Gonçalves de Araujo, que me enviou vários Cordéis e inspirou a escrita deste texto.

Escritora Claudia Canto, que escreveu o texto que vou abordar em prosa.

 

Comecei o ano ganhando um presente maravilhoso: uma caixa com mais de vinte cordéis. O presente não é pra mim é para o Sistema de Bibliotecas da Universidade Estadual de Londrina (UEL) que tem um dos maiores acervos públicos organizado e disponível do mundo. Espalho essa grandeza, pois sei que esse acervo se assemelha em quantidade com os existentes na França e Japão. Confesso que sinto orgulho e soberba disso. Sou encantada por Literatura de Cordel e também por essa preciosa Coleção.

Outro dia num grupo do whatsApp conheci o cordelista paulista Josué Gonçalves de Araujo que ao saber do acervo da UEL mandou vários cordéis de sua autoria com a seguinte recomendação: leia antes de entregar.

Tarefa cumprida! Li compulsivamente. Gostei muito e resolvi trazer aqui algumas reflexões.

A primeira dela é a epígrafe de Josué para o Cordel 50 anos depois... mirantense é para sempre:

Homenagens a minha Avó:

Sá Maria, minha avó,

Não soube o que é fatura.

Não conheceu a escola,

Mesmo assim ganhou cultura

Vivendo lá no sertão,

Nas horas de solidão,

Ouvindo  literatura.

(Araujo, 2003, p.3)

 

Lendo essa dedicatória recordei da minha tese de doutorado quando digo que o bibliotecário deve abrir as portas da biblioteca para o leitor ler com os ouvidos. Na epígrafe Josué nos apresenta sua avó que uma leitora de mundo e em outros cordéis, ao apresentar sua biografia ele narra o encantamento pela voz da avó mediando literatura.  

Esse cordelista com maestria aborda desde temas sociais da vida real até os que têm origem no imaginário coletivo. Como meu objetivo aqui são as crianças-personagens escolhi o Cordel de Claudia Canto e Josué. Ela escreve o texto em prosa e ele em rima. São dois textos maravilhosos com a mesma coluna vertebral, mas com uma toada diferente. Há diálogo e acréscimo na tecitura literária dos autores.

O título do Cordel é O Menino Magricela e o Menino de Mãos Dadas que relata a triste realidade de um menino em situação de rua. Decido começar pela epígrafe:

Eu vou contar uma história

De um Menino Magricela

Que não morava em castelo,

Como a bela Cinderela,

De tão pobre que ele era,

A fome sempre megera

Despia a sua costela. 

(Canto; Gonçalves, 2023, p.5)

 

Nessa história tem um Menino de Mãos Dadas que anda livremente com sua mãe pelas ruas de São Paulo à caminho do McDonalds. Tem um Menino Magricela que anda livremente com sua capa de super-herói e que um dia desatento esbarra no Menino de Mãos Dadas.

A mãe puxou o seu filho

Deu-lhe dois “lanches felizes”,

Com a gula aliviada

Voltaram para Perdizes.

O Menino Magricela,

Mais esperto na esparrela

Foi juntar-se aos infelizes.

[...]

Recolheu do esconderijo

A sua lata lotada

De cola sem coca-cola [...].”  

(Canto; Gonçalves, 2023, p.16).

 

Se me pedissem para classificar esse Cordel diria que é pura denúncia. Uma crítica social que poderá ser conhecida além das fronteiras brasileiras, pois essa edição tem a tradução do texto para o inglês e alemão.

Não posso negar que o texto me entristeceu, mas respira respira respira Sueli. A verdade é que a gente sabe a realidade nas ruas das cidades brasileiras, mas quando o texto é literário ele cutuca, chega e toca fundo a alma.

Assim como Antonio Candido acredito que a literatura tem função de humanizar, mexer com a memória e a emoção daqueles que, por alguns ou vários motivos perderam a sensibilidade pelo outro, se fecharam para a subjetividade da vida. Sem enxergar as necessidades do outro. O outro que as vezes sem ter quase nada, sobrevive.

Mais tarde, rindo infeliz,

Corria pela cidade

Fazendo mais traquinagens

Com pessoas de idade,

Provocando e declamando,

Glosando e até versejando

Um poema de verdade.

 

No decorrer do texto os autores apresentam a realidade social crua vivida pelo menino em situação de rua, por exemplo os rótulos depreciativos: ladrão, trombadinha, delinquente. Para encerrar o Cordel o cordelista acrescenta:

Cordel é a cola da hora

Que cola e ninguém descola,

Ainda aumenta a autoestima.

No Cordel, você decola!

A cola é muito cruel,

Só a magia do Cordel

Dá-lhe a vida, dá-lhe escola.

(Canto; Gonçalves, 2023, p.17)

 

Acredito que você leitor pode estar pensando: será que é aconselhável que uma criança tenha contato com um texto nessa temática e com tamanha intensidade? Minha resposta é SIM, pois colocar a criança numa redoma de vidro, protegida das dores da vida é um engodo.

Sugestões de leitura:           

AGUIAR, Izabel Maria de et al. Literatura de cordel digitalizada: disseminação do acervo da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina. Repositório FEBAB, São Paulo, n.15, 2008. Disponível em: http://repositorio.febab.org.br/items/show/4280.

ARAUJO, Josué Gonçalves de. 50 anos depois... mirantense é para sempre. São Paulo: Edição do Autor, 2013.

ARAUJO, Josué Gonçalves de; CANTO, Claudia. O menino magricela e o menino de mãos dadas. São Paulo: Editora Areia Dourada, 2018.

CANTO, Claudia; GONÇALVES, Josué. O menino magricela e o menino de mãos dadas. São Paulo: Editora Claudia Canto, 2023. (obra trilíngue português, inglês e alemão).


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SUELI BORTOLIN

Doutora e Mestre em Ciência da Informação pela UNESP/ Marília. Professora do Departamento de Ciências da Informação do CECA/UEL - Ex-Presidente e Ex-Secretária da ONG Mundoquelê.